Capítulo 21: Voo livre

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Final do ano 440.
Outono, 99° dia.

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De madrugada, a luz das luas vinha por entre as cortinas semiabertas. Susanna se agitava. Com seu estado emocional, de forma alguma voltaria a dormir, então pegou seu caderno de memórias na cômoda. Sobre a cama vasta do quarto de hóspedes, apoiou-se na cabeceira, entrelaçou as pernas e começou a escrever avidamente, como um desabafo. Escreveu através das runas hexáglicas, o alfabeto conhecido, sobre como se sentia após ter visto face a face alguns espiritualistas. Por vezes a tinta da caneta não a acompanhava.

Já haviam se passado dois dias. De certa forma, eles não eram mais figuras de contos, como os cabeças-de-peixe que tanto a aterrorizaram na infância. Os espiritualistas eram reais, e, Leonor, sua mentora, um dia havia sido um deles.

Após o nascer do sol, Susanna foi ao átrio principal, onde pôde ver algumas faxineiras esfregando o chão incessantemente para tirar manchas de sangue remanescentes do ataque terrorista. Outros trabalhadores repunham as vidraças e outros reparavam os danos às estruturas de madeira. Ninguém, de fato, havia conseguido descansar.

Continuando em sua caminhada pela Mansão, próxima a sala de celebrações, ela ouviu Klaus e Leonor discutirem nos andares acima. Não se lembrava de ter a audição tão aguçada, uma mudança dentre outras que vinham acontecendo.

Susanna encontrou Nayoung no externo sul, onde juntamente com funcionários da cozinha carregavam entulhos e os empilhavam. Outros tentavam consertar o jardim, completamente pisoteado. Ela se propôs a ajudar; a força mística em seus braços era muito útil, pois tinha equivalência a força de três humanos, e, deste modo, ela trabalhou a manhã toda.

Somente à tarde, foi revelado a eles o motivo das discussões de Leonor e Klaus. Os senhores da Mansão divergiram sobre qual medida tomariam após o ataque espiritualista. Klaus se sobressaiu e determinou que seus dois aprendizes mais velhos deveriam estudar uma nova habilidade mística, para estarem mais preparados para eventuais encontros com espiritualistas. A habilidade sugerida por ele era da doutrina da alma, razão da divergência de Leonor. Mas foi decidido. Susanna e Eric deveriam aprender a Oclusão.

— Vá, pequena-mariposa, eu posso cuidar das coisas por aqui — disse Nayoung a ela, enquanto recebia sua ajuda na organização da mansão.

Susanna amadurecia dia após dia, pois já quase aos doze, encaminhava-se para o fim da adolescência. Mesmo assim não negava o apego maternal que desenvolveu pela humana. E a criada correspondia a sensação. A aparência de Susanna era tenra, ainda muito jovem; mas, como Nayoung bem sabia, misticos amadureciam mais depressa e logo logo a garota não precisaria mais de seus cuidados. Susanna segurou as mãos de sua amiga e as beijou em forma de cumprimento. A empregada ficou contente ao vê-la bem depois de tanta dor. E, embora Susanna não pudesse ver seu rosto detrás da máscara, sabia da felicidade dela. Então a jovem mística pediu licença e seguiu para os afazeres com Klaus.

Do lado de fora, poucas nuvens se apresentavam entre o brilho oriundo de além das montanhas. Eric, Klaus e Susanna desceram a colina rumo ao vale de Onosis.

Eric, de rosto limpo, pois havia desistido de cultivar a barba, ia a frente de todos, já quase mais alto que seu pai. Ainda mantinha o costume de usar as roupas de tom escuro. O final de outono tinha um clima moderado e úmido, muito atrativo para as infestações de insetos. Ele costumava passar um perfume nas vestes para espantá-los, e Susanna achava que ele ficava muito bem assim.

O Rancor da Mariposa (Saga Kaedra - Lembrança)Onde histórias criam vida. Descubra agora