Capítulo 20: Ferida aberta

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Quando o verão surgiu além dos montes gelados e a neve derreteu, a temporada de caça retornou. Susanna passou a frequentar todas as expedições à floresta desde então, tornando-se boa atiradora com o tempo. Precisava disso. Com uma boa mira, matava suas vítimas sem sofrimento, o que lhe garantia o mínino de dignidade.

Durante as aulas teóricas, Leonor ficava sempre frígida em relação a ela. Fora os insultos "vermezinha" e "cara de verme" que costumava desferir, a anciã demonstrava não ter muito mais interesse na garota. Susanna dava graças por poder vivenciar seu luto em paz. Pensou, no entanto, se isso não seria um sinal de sua corrupção pessoal.

Ela havia mudado com certeza. Aos onze anos de idade, ambicionava esquecer os desesperos da infância. Ela caçava a própria comida, tinha um teto, criados a sua disposição. De certa forma, era melhor do que aceitar uma maldição para si mesma.

Tal comodismo não impedia que alguns pensamentos viessem a sua mente:

Você nasceu para ser um sacrifício.

Todos que estão à sua volta correm perigo.

É tudo culpa deles... dos malditos espiritualistas.

Você é a escolhida amaldiçoada de Feltis...

Ela tentou ignorar o que dizia a si mesma, mas após tanto tempo ouvindo, essas crenças impregnaram no seu íntimo mais profundo.

Nos treinos de luta física, Leonor reparou que a garotinha que um dia conheceu havia encorpado. Ainda que seu neto fosse evidentemente superior em força e que já tivesse progresso em seu treino sobre os sentimentos, a garota estrangeira se esforçava em tudo que fazia. Então, a anciã nunca mais exigiu que Eric fosse impiedoso com sua companheira; abandonou o tratamento de "verme" usado anteriormente e passou a chamá-la pelo nome. Também não deu importância ao fato de Susanna voltar a usar os antigos bastões de treinamento, feitos de madeira, e não mais o presente de seu pai, o bastão verde com várias inscrições rúnicas.

Finalmente, a garota mariposa havia se adaptado.

A primavera passou depressa. Klaus colecionou alguns troféus: chifres, peles, ossos, materiais que sobravam das caças e usava para decorar a sala. Eric havia se tornado um ávido conhecedor da floresta que os rodeava. Susanna somente tentava esquecer tudo, registrando seus sentimentos nas páginas de seu caderno de memórias. Ela ainda tinha parte com quem foi um dia, e, em seu íntimo, acreditava estar em dívida.

No outono, após a temporada de caça terminar; os frigoríficos estavam cheios. Num banquete celebrativo, todos comiam em seus lugares à longa mesa repleta de carnes e frutas de todos os tipos. Eric tinha se acostumado a um cabelo de tamanho médio, e alguns folículos estranhos cresciam em seu rosto. Susanna já o tinha recomendado retirar, mas ele respondeu que queria se tornar um homem barbudo. Ela riu disso enquanto comia a coxa de cannicopus, pois era evidente que ele não tinha genética para barba.

Klaus contava suas histórias de caça, preenchendo a sala com entusiasmo. Susanna e Eric sabiam o quanto ele exagerava, afinal estiveram em todas as expedições das últimas estações. Leonor fingia que acreditava, apenas para que o senhor místico a divertisse com tanta criatividade. Funcionários passavam aqui e acolá, trabalhando, auxiliando na mesa...

Até que, de repente, ouviu-se um estrondo no andar de cima. Todos pararam o que estavam fazendo. Fitaram uns aos outros com olhos espantados.

— As meninas! — gritou Leonor. Com ela, foram às pressas duas empregadas escada acima.

O Rancor da Mariposa (Saga Kaedra - Lembrança)Onde histórias criam vida. Descubra agora