Capítulo 32: Santuário Ancestral parte 1

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Outono, 93° dia.

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A vista dela perdia o foco e a respiração lhe faltava conforme sua caixa torácica era pressionada contra o piso e suas mãos atadas por grilhões de ferro. Ela ignorava as dores físicas; no entanto, sua consciência sofria. Procurou Eric com o olhar, mas não o encontrou. Outra vez suas maldições afetavam uma pessoa a qual tinha prestígio.

Os espiritualistas a dominavam através do sexto sentido, inibindo que ela acessasse sentimentos, também era custoso para ela que pensasse qualquer coisa, pois sua cabeça se acometia por muitas dores.

Ela foi erguida do chão por um inimigo e sustentada sobre seus ombros, carregada para o lado de fora da Mansão do Vale e colocada sobre um niemerin. Ela sentia os ossos da coluna da ave logo abaixo das penas verdes. O animal se agitava com o contato.

Quando foi virada para o outro lado, sem qualquer controle sobre seu próprio corpo, finalmente pôde ver Eric amarrado em outra ave. Estava desmaiado, com a mandíbula inchada. Susanna queria ter podido irar-se, mas até isso haviam lhe tirado. Via o céu cinzento, nublado e carregado, não tendo nada dentro de si que não fosse a desesperança e a sensação distante de que tudo estava prestes a acabar.

Um espiritualista a cobriu com um capuz após tê-la amarrado. O Bastão de Hefran foi arrancado das mãos feridas dela. Antes da ave levantar voo, Susanna ouviu a zombaria de seus inimigos e sua desesperança aumentava.

Ela não sentia a presença de Eric com o sexto sentido, e isso a atormentava. As aves levantaram voo do vale, muitas delas. Não sabia se seriam levados para o mesmo lugar. Permanecia anestesiada; limitada à sensação fria do vento e da vaporização d'água proveniente das inúmeras cachoeiras ao longo do caminho.

Após algum tempo de voo — ela não sabia quanto —, sentiu o chão firme abaixo; seu peso voltando a ter significância; lembrando-na de sua própria existência. A venda foi tirada. Com a visão adaptando-se à luz, avistou um acampamento espiritualista à beira de uma forte correnteza e uma cadeia de ilhas com formações rochosas vertiginosas que chegavam às nuvens. O clima mais quente.

Aquele local era Kunabree, um santuário espiritualista, belo e terrível, tal como as histórias diziam. Rompendo a água corrente, uma gigantesca estátua de Feltis feita de forzeliti — joia verde-musgo da região. A rainha lendária em pose heroica, portando seu cajado com aros representativos do sol, e sua coroa como longos dentes, presos à tiara, descendo a frente do rosto.

Estavam longe de tudo, no centro da Ithília, o território mais místico de Kaedra.

Susanna foi tirada da ave e jogada ao chão, seu corpo tratado como um pedaço de carne qualquer. Podia jurar ter ouvido um crak vindo de suas costelas. Vários espiritualistas riam e conversavam à fogueira do acampamento, comendo de um assado avermelhado; um mal cheiro vindo com a fumaça. Ela não queria pensar a respeito, mas tendo em vista que eles não comiam animais devido a crença que tinham; presumia serem pessoas.

O clima era pesado. O rosto de Susanna despencado ao chão barroso; sem contato visual com Eric, mas passou a senti-lo. E além dos pequenos vermes rastejantes sobre a terra, avistou seu bastão em forma reduzida sob a posse de Karl Fenna, a sacerdotisa. Apenas o caderno de memórias e as roupas estavam com ela. Procurava uma possível saída.

— Esses dois são carne nova para a oferenda? — perguntou um dos fanáticos, aparentemente equipado para viagem.

— Sim, e sangue nobre! Olhem as roupas deles — respondeu Karl Fenna com ironia.

O sol desferia suas ondas escaldantes, penetrando a onda de umidade e cozinhando-a sobre o solo. A mente dela ainda nebulosa. Debochando, eles jogaram sobre ela o líquido negro que eles bebiam para ganhar vitalidade. O gosto amargo veio ao paladar dela.

O Rancor da Mariposa (Saga Kaedra - Lembrança)Onde histórias criam vida. Descubra agora