01

123 5 3
                                    

     Ainda me lembro bem.
     Dos gritos. Os gritos escandalosos que demos quando vimos aquele Gol branco se aproximando. Segurei no ombro firme de Lina como se estivéssemos na beira de um precipício. E fora... Figurativamente isso. Foi insano. Por um segundo, ouvi os pneus gritando e logo em seguida, mais nada. Estava no banco de trás. E por incrível que pareça, consegui escutar o coração de Lina.

     Angelina.
     Devo ter colocado a mão no pescoço dela por acidente, pois senti seu coração dar um galope. Foi tão, tão assustador, que não me dá mais vontade de descrever. Só a sensação da adrenalina no momento me assombra durante os treinos.

     Pulei para a quadra.
     Com a ausência de um dos jogadores, fizemos o treinamento em dupla. Apenas eu e... Lara. A melhor amiga dela.

     Lara era uma garota extrovertida e amigável, mas não estava sendo tão amigável comigo como costumava ser. Na verdade, estava tão destruída quanto eu, já que conhecia minha irmã quase tão melhor quanto eu mesma.

     — Ei! Você finalmente veio. — Disse Drica, nossa colega da aula de vôlei, mas do time adversário. — Meus sinceros pêsames. Estamos todos sem acreditar que ela se foi... O Julio — o professor — mal consegue acreditar tanto quanto nós.

     Fazíamos aula de vôlei há dois anos. Nos apegamos uns aos outros, agora éramos também quase uma família.

     — Obrigada. Eu... Consigo entender. — Tentei sorrir. — Mas já faz um mês, podemos... podemos nos concentrar para o jogo semana que vem.

     Drica sorriu para mim, me passando a bola. Lara se levantou da cadeira na força do ódio, não olhou para mim, não olhou para a bola, não levantou a cabeça e muito menos o olhar. Os cabelos cacheados e castanhos estavam soltos como uma linda cascata pelos ombros, e o sol bateu em suas sardas quando finalmente levantou a cabeça para colocar uma faixa. Fui fazer o saque.

     Um péssimo jogo. Os dois times estavam de luto, errávamos o tempo todo, mas Lara não abriu a boca em nenhum segundo. Não reclamou que a bola foi fora como costumava fazer, não me pediu para sacar, perdia o equilíbrio e caía no chão mais que o normal, e estava um pouco grossa em não responder a mim e apenas assentir sem sequer reparar em meus olhos consoladores. Eu sou a irmã dela, e nem estava em um luto tão profundo quanto Lara. Mas as duas... eram grudadas. 

     Meu pai certa vez trouxe para casa uma bola de vôlei e uma pequena rede. Tinha não mais que oito anos de idade e Lina era um ano mais velha que eu, quando brincávamos com a bola, jogando uma para outra. Quando conheceu Lara, na nova escola, levou ela para casa e jogamos nós três, todos os sábados, cerca de 13h ou 13h30, Lara aparecia na porta para jogarmos. Quando alcançamos uma idade considerável, nosso pai colocou Lina na aula de vôlei. Um ano depois, eu.

     E foi assim que nos tornamos melhores alunas. Agora, com aquela merda de acidente, eu havia perdido minha irmã. Minha única irmã.

     — Sei como se sente. Sua mente, seu coração... Estão vazios. — Eu disse a ela em sussurros tranquilos enquanto bebia água mineral. Ela bebia com gás.

     Minhas falas foram como um gatilho para Lara chorar.
     — Fizemos planos. — gaguejou ela, com a voz embargada. — Ano que vem iríamos para o Rio. Iríamos morar juntas, eu farei medicina e ela faria engenharia. Seríamos depois profissionais de vôlei. Seríamos felizes, juntas.

     Estava começando a entender, tanto que meu queixo caiu de leve. Lara não era só uma amiga para minha irmã. Estavam apaixonadas por um futuro juntas. Não era atoa que estava sofrendo tanto.

     — Nós sacamos? — perguntou André, do outro time.

     Assenti, e recomeçamos o jogo.

     [...]

     Depois daquilo, comecei a passar direito perto da avenida que sofremos o acidente. Flashes viam direto para minha cabeça, do carro de Lina sendo esmagado por aquele Gol, e eu ter saído ilesa com André e Lara. Eleanor, que estava no banco da frente, havia sofrido um desmaio grave e seu pescoço quase se partiu no meio, mas está no hospital, ainda se recuperando e sem previsão para alta.

     Lara, André e eu, estávamos no banco de trás. Eu estava no meio, quando André colocou a mão na minha bunda.

     Lara havia soltado uma risada tão desgraçada que ainda me lembro do ritmo que fez. Eu estava tão bêbada que me virei e me sentei no colo de André pelos relatos de Lara. Nos beijamos agressivamente no carro e Angelina apelou, começou a xingar e querer virar para trás para nos dar um tapa ou sei lá o quê ela queria ter feito para impedir que André tentasse tirar a minha roupa de tão bêbados que estávamos. Eleanor deu gritos de desespero no volante e Lara deu risadas, conseguindo nos separar.

     Quando voltei para o meio, vi a luz fortíssima do farol do Gol perto demais de nós. Minha primeira reação foi colocar a mão no ombro bronzeado de Lina. E gritar.

    "VIRA!" gritei, na esperança de ter sido só um susto depois, que daqui uma hora estaríamos em casa, rindo de tudo isso e escondendo dos nossos pais.

     Mas não deu certo. Ela virou para a direita, que deu para a calçada e o carro nos esmagou. Esmagou Lina, quase quebrou o pescoço de Eleanor. Deixou o André de muletas por um tempo, e quebrei meu braço. Lara saiu com um arranhão no pescoço, e acho que isso havia a enfurecido, se amava tanto Lina quanto eu imaginava, Lara poderia querer ter morrido no lugar dela.

     As vezes, eu tenho esse pensamento, por eu ter provocado a falta de atenção em minha irmã.

     Agora havia uma placa em um poste, naquela rua.

     "Dirija com cuidado, em memória de Angelina Maria Silver."

     Soltei um riso raro. Ela odiava aquele nome, já que meus pais me nomearam com um nome que ela queria que fosse dela. Quando finalmente se acostumara com isso, começou a me criticar. Mas até eu havia tomado costume disso.

     Não me senti pronta para voltar para casa.

Reacendendo-meOnde histórias criam vida. Descubra agora