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     Passei a noite acordada, depois de ter um sonho terrível com um ganso. Depois, comecei a recordar Angelina, seus traços fortes e seus olhos gigantes. Ela era uma versão da Marilyn Monroe de cabelo preto e jogadora de vôlei.

     Respirei fundo, quando pensei nas mil e uma coisas que poderia ter feito, que poderiam ter salvado a Lina. Se talvez, eu tivesse virando o volante, ou se não tivesse bêbada demais a ponto de sentar no colo de André depois dela dizer que não gostava da minha relação com ele, se eu não tivesse feito nada daquilo.

     Se eu não tivesse bebido demais.
     Se eu não tivesse a distraído.
     Se eu não tivesse gritado no ouvido dela...

      Tantos "e se" ecoavam na minha cabeça e nenhum sinal de sono. Parecia que eu estava em um pesadelo, como se minha vida estivesse girando em círculos e apesar de tudo, apesar dos meus esforços, das minhas tentativas de esquecimento, nada tirava minha irmã da cabeça. Que poderia ter feito alto diferente. Por isso, chorei baixinho ás quatro da manhã, depositando toda a minha raiva e barganha em lágrimas.

     No dia seguinte, fui acordada na aula do professor Horácio, que pediu que obrigatoriamente o chamássemos de sr. Louis. Não escutei meu nome, nem um balançar na minha mesa. Só a voz dele irritantemente alta e embargada soando ao meu lado.

     — Alanis — disse ele, de repente, com muita entonação no S. — Eu fiquei aqui com seus colegas imaginando se ia acordar ou não. E eu imagino que saiba qual cientista descobriu a origem das células a partir de uma cortiça que tem a função de proteger os troncos das árvores, para estar tão tranquila a ponto de dormir em sala de aula.

     Me viro para os lados, minha visão ainda escurecida. Não vi nenhum rosto conhecido, exceto o de Tori e Iuri, mas eles não estava se importando muito comigo. Encarei o professor.

     Sabia quem havia descoberto a origem das células, mas de fato, naquele momento, eu não sabia absolutamente nada, apenas que estava morrendo de sono. Meus olhos estavam pregados e eu sentia um gosto extremamente ruim na boca, sem contar com a dor no pescoço de ficar deitada naquela posição na carteira por tempo demais. E principalmente sede.

     — Posso ir ao banheiro? — pedi, percebendo que estava rouca. Uma boa lavada nos olhos melhoraria aquilo.

     — Você está expulsa da minha aula por hoje, senhorita Silver. — disse o professor. — Pode dar uma passada no banheiro quando estiver indo para a coordenação.

     Bufei, pegando a mochila e saindo, de cabeça baixa. A turma inteira começou a falar estupidamente de novo antes do professor pedir silêncio com um grito, e parei no corredor. Especificamente, nas escadas que davam para lá, e abri um pacote de Passatempo, enquanto encarava o relógio, indicando mais de meia hora para a próxima aula. Peguei minha agenda e comecei a fazer desenhos de margaridas por toda a página em branco. Passados dez minutos, eu dormi.

     Considerando que Dante e eu estávamos nos pegando atrás do almoxarifado até ás uma da manhã e eu tirei um cochilo só ás quatro e meia e já tive que acordar uma hora depois para me arrumar, não havia dormido nada e tinha toda razão para estar morta de sono. E para ser sincera, um vinho naquela hora faria bem. Claro, não me acordaria nem um pouco, mas eu estava cansada demais para estudar, e a aula seguinte seria de francês.

     Então, eu ficaria ali, sentada na escada comendo bolachas até o sinal bater enquanto tentava entender pelo o que exatamente estava passando.

     — Dia difícil? — perguntou a voz frouxa de Ravi ao meu lado.
   
     — O que está fazendo aqui. — tentei perguntar.

     — O mesmo que você. — disse ele. — fugindo.

     Ravi carregava em mãos um exemplar de 1984, de George Orwell, enquanto abria uma garrafinha aparentemente com água. Mas, claro que não era água, apenas sua dose de vodca diária.

     — Uma pesquisa diz que essa merda gera alegria e euforia. Mais de 58% dos entrevistados relataram que se sentiram energizados após um drinque e 59% contaram ficar mais confiantes. — Ele riu. — E ainda diminui o risco de um derrame cerebral.

     — Você está é se matando aos poucos.

     — Não é isso que fazemos todos os dias da nossa vida? — Disse ele, olhando para o livro. — O que é a vida, Alanis, sem um pouco de risco?

     — Tenho certeza que já ouvi isso em algum lugar. — Falei, depois de um minuto em silêncio. — Estava na aula do Duarte?

     — Não. — ele disse. — A professora de história me expulsou da aula já que eu estava com cheiro de cigarro.

     — Que merda, cara. — respondo.

     — Chega. — ele se levantou. — Vamos para a ponte. Preciso acender um cigarro.

     Fiquei levemente surpresa por escutar "vamos" e não "vou". Acabei impulsivamente me levantando e o seguindo, e encarei a camisa de botões branca por cima do uniforme. O tênis dele era um vans, e Ravi adorava usar correntes prateadas. Percebera isso no primeiro dia em que nos conhecemos, no esconderijo.

     Atravessamos o campus e imaginei o se nossos amigos podiam nos ver do predinho.

     — Sabe, Silver — disse ele, repentinamente. — Eu nunca vi alguém com o cabelo tão escuro. Fiquei impressionado. Eu achava que a pessoa do cabelo mais ébano que existia era Emily Dickinson, mas a foto dela está em preto e branco.

     — E eu nunca vi alguém do cabelo mais cor de mogno quanto o seu. — Respondi, sorrindo e colocando as mãos no bolso enquanto atravessamos o bosque até a ponte do esconderijo.

     — Péssimo. — ele respondeu.

     Dei de ombros, franzindo a testa quando me virei rapidamente apenas para cumprir o gesto, já que um feixe de luz do sol passava atrás dele. Um sol extremamente mentiroso, já que fazia frio naquele dia.

     — Há mais perigo em teus olhos do que em vinte espadas! — Ravi recitou quando nos encaramos.

     — Maldito Shakespeare. — Murmurei, e ele acendeu um cigarro. — As coisas mais mesquinhas enchem de orgulho os indivíduos baixos.

     Nos aproximamos da ponte enquanto descíamos até o esconderijo nem um pouco secreto, e ele se sentava calmamente na beirada da ponte.
     — Há coisa mais extraordinária do que esse rio? — indagou de repente.

     — É o rio mais poluído que eu já vi na minha vida. — disse eu. — Nunca vi um peixe.

     — É como o pulmão da Miranda. — Ele falou, e eu levei a cabeça para trás no meio das gargalhadas. — E o seu emocional.

     — Meu emocional é tão poluído quanto esse rio e estragado como o pulmão da Miranda!? — pergunto, indignada.

     Ele apenas assentiu, acendendo outro cigarro.
     — Por que você quer tanto ficar com a Ray?

     Um minuto de silêncio, quando ele virou o rosto para mim e seu sorriso idiota sumia do rosto. Os olhos de Ravi me lembravam de um peixe morto, mas naquela hora, ele me olhava com curiosidade.

     — Ela tem uma bunda extraordinária. — ele respondeu, por fim.

Reacendendo-meOnde histórias criam vida. Descubra agora