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     Acordei morta, no domingo, e fingi estar dormindo na intenção de realmente voltar a cochilar. Ao contrário de mim e Ray, quem estava completamente largada na cama, com a maquiagem borrada e usando praticamente apenas sua lingerie, o vestido que usara noite passada estava no chão, pois caiu de sua cama. Miranda completou todos os hábitos de sua rotina, e saiu do dormitório com o livro de Virginia Woolf em mãos. 

     Isso me fez lembrar dos meus poemas nacionais favoritos, e entre eles, Clarice Lispector, um sentimento em pessoa. Ela foi uma mulher realmente sofredora, com sua literatura psicológica e intimista. Carreguei Hora da Estrela e Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres comigo na viagem para cá, e reviro a cesta com minhas coisas debaixo da cama e encontro os dois. Abro o segundo dito e leio a frase que marquei, provavelmente a uns três anos atrás.

"Mas existe um grande, o maior obstáculo para eu ir adiante: eu mesma. Tenho sido a maior dificuldade no meu caminho. É com enorme esforço que consigo me sobrepor a mim mesma."

     Tudo que eu tenho passado, durante todos esses meses, foi estar de luto. Lamentar a ausência da minha irmã mais velha. Destruir-me emocionalmente e me culpar pelo acidente. Socar as paredes do meu cérebro com frases torturantes e um desejo imenso de voltar no tempo e fazer tudo diferente. Mas não dá, simplesmente não é possível. O tempo é o presente, e o presente fica no passado, e vivemos o futuro. Angelina não faz parte do meu futuro, Dante não faz parte do meu futuro. Minha mãe não faz parte dele também, tudo que ela fez ficou no passado, e deverá se arrepender por isso por um bom tempo, mas não deixarei de procurá-la algum dia.

    O luto é uma guerra. Por isso tem esse nome.

    Não acontece só quando alguém importante para nós morre. Acontece quando terminamos um ciclo, quando o amor acaba, quando mudamos de casa. Não um edifício a base de cimento e alicerce, mas quando mudamos um lar sentimental. Pessoas são lares, animais são lares. O luto é perder o lar, perder o amor. Ele acaba quando o amor é superado, mesmo havendo da mesma forma uma brecha dele em todos nós. Com o tempo, ele só diminui, mas nunca some. Minha maior dificuldade, todos esses meses, foi entender isso. Que minha vida não acabou, e apesar de Lina ter ficado para trás, eu ainda vou ter dezoito, dezenove e vinte anos adiante, e ela não vai parar, o mundo não vai parar. E essa é a melhor parte, eu ainda estou aqui, estou viva.

     Talvez esteja na hora de eu começar a viver.

[...]

     Já havia ido na biblioteca da escola algumas vezes para estudar e pegar alguns livros emprestados, e entrei numa fila enorme de devolução naquela manhã. A bibliotecária foi carinhosamente apelidada de Dona Branca, por sofrer de uma condição de albinismo. Ela era uma senhora, não tão velha, e simpática, ao contrário do antigo bibliotecário. Rapidamente fiz amizade com ela. Os livros que iria devolver seria alguns de Edgar Allan Poe, e o primeiro da saga Jogos Vorazes.

     Até que meus olhos se encontram com os de Dante, que está cabisbaixo do outro lado da biblioteca, enquanto lia um livro aparentemente nacional. Havia algo estranho nele, como se estivesse me evitando, ou nem havia me notado. Pelo que eu saiba, ele ainda não estava ciente de que não queria mais nada com ele. Tirei a pedra de Lolita que carregava no bolso, mas quando a Branca gritou "Próximo!" a enfiei de volta na minha calça imediatamente.

     — Irá pedir mais algum, Alanis? — Perguntou ela, sabendo da minha paixão por livros. Neguei com a cabeça, tentando sorrir. — Quer saber quantos leu este ano, aqui na biblioteca? 

     Fiz que sim, e ela me apresentou o número.

     — Trinta e oito, estou impressionada. — Ela cantarola. — O maior número registrado dessa escola, desde agosto. 

     As férias de fim de ano se iniciariam mês que vêm, ou seja, eu não tinha escolha de ficar. Mas saberia que voltaria para casa com meu pai e minha avó, e conversaria com a mãe apenas se ela quisesse falar comigo. Desde sua primeira ligação, pelo telefone da coordenação, não tenho recebido nada dela. Como desistiu rápido, mamãe.

     Ray, contrariando a mim e Mira, falava muito de sua próxima viagem para o Rio Grande do Norte, que iria sozinha para ver sua madrinha Marisol, a quem via como uma verdadeira figura materna, sem deixar de amar sua mãe também. As duas se divertiriam muito e compraria presentes para nós duas. 

     Miranda contava que até o natal chegar, ficaria na casa de sua mãe, pois todo ano ela revezava para poder passar as boas festas com seus pais, mesmo separados. E como tivera seu natal ao lado da mãe no ano anterior, e dessa vez — infelizmente, de acordo a própria — seria com seu pai. 

      O clima natalino na escola era evidente. As portas dos dormitórios foram decoradas com guirlandas, e havia uma árvore enorme de natal na recepção do colégio. Um boneco de neve de pelúcia no centro das mesas do refeitório, e uma miniatura do trenó do Papai Noel na mesa da bibliotecária, e uma miniatura de uma árvore de natal providenciada pela Branca junto dele. 

      — Muito bom. — Assenti, orgulhosa do meu número de leituras. — Contando com os livros que li antes de vir para cá, devo ter lido quarenta e um. 

     E depois de conversar sobre os livros com ela, fui em direção a mesa onde estava Dante, sozinho. Eu dei passos lentos e hesitantes, como se meu corpo não quisesse estar próximo dele. Como se alguma força tentasse me levar para o lado oposto. 

     — Oi. — disse eu, mas não tive resposta. — E... aí?

     — Oi. — ele respondeu. — Quanto tempo. 

     Ele não olhava para mim. E evitei isso também. 

     — Queria falar contigo, sobre isso. — Coloquei o colar que ele me deu de presente na mesma. — Não quero mais nada contigo. 

    Como não consegui encontrar outra frase melhor na minha cabeça, disse esta com maior cuidado possível para não ferir seus sentimentos. O pior fato era que eu e ele não tínhamos nada sério, mas de tantas coisas que ele me fez, senti que era algo daquele tipo. Já havia terminado primeiro várias vezes, mas sempre que o fazia, meu coração sempre acelerava. Ainda mais quando decepciono a pessoa.

     — Então é isso. — Ele fecha o livro e finalmente encontra meus olhos. — Vai acabar com tudo?

     — Somos apenas ficantes. Não é tão absurdo assim, tem várias garotas bonitas que estão na fila para te beijar, e estou atrapalhando, e...

     — É isso que você me vê. — Ele cruza os braços. — Você não me ama de verdade, Alanis, dá para ver. Eu fiz de tudo, de tudo, mas não foi suficiente, e sempre a sua desculpa é "somos ficantes" ou "não temos nada" e faz me sentir insignificante, sabe por quê? Eu te amei verdadeiramente, mas mesmo assim tu quis ir para o caminho errado. Eu ia te pedir em namoro, mas depois de tanto tempo, você insiste com isso. Você é frígida, Alanis, e eu não mereço você, mereço alguém que quer ficar.

     E, apanhando a pedra, ele se levantou com o livro e me deixou, antes de também dizer:

     — Não quero mais nada contigo.

Reacendendo-meOnde histórias criam vida. Descubra agora