Bata à porta

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-O que tanto te preocupa, meu filho das águas?- perguntou o Papa após encontrar Rain debruçado na varanda observando Fire brincar animadamente com Noto no belo jardim abaixo ainda naquela tarde.

-Não sei como nós poderíamos gerar esse ser, nós nunca teríamos nada, e mesmo que eu porventura pudesse amá-lo de alguma forma, ele me odeia e eu não tiro a razão dele, o que eu fiz não tem perdão, eu destruí a vida dele de tantas formas...

-Não direi que ele poderá lhe perdoar ou não por seus atos, pois não cabe a mim essa decisão, você fez o que fez por suas motivações, mas se julga-se culpado por esse passado irreversível, converse com ele, mostre seu sincero arrependimento, ofereça a sua paz como lhe convém.

-Ah, meu Pai! Quantas vezes eu já tentei! Mas ele nunca sequer parou para ouvir-me! Dá-me as costas e retira-se, isso quando não ofende-me com suas ásperas palavras. Nunca pude adentrar em seu reino e ele jamais retornou ao meu, mas juro-lhe que tentei em todas as vezes que aqui mesmo nesse palácio nos vimos. Se não fossem suas leis e Earth, ele certamente teria me agredido um sem número de vezes em que eu estive ao seu alcance.

Papa observava sorrindo as entidades que brincavam, orgulhoso de suas criações, a mais velha e aquela que sequer havia sido criada ainda. Apesar de ser apenas o construtor de todos os seis Ghouls, ele sentia que eram uma família e lhe doía que eles tivessem problemas tão sérios e penosos entre si, problemas que geravam ódio e rancor, problemas que quase levaram a uma guerra e a morte de um deles e isso seria também a queda de seu mundo e da sua mente. Ele não podia interferir na relação de suas crias amadas a não ser em casos extremos e queria de todo seu cerne que pudessem conviver em perfeita harmonia.

Tendo apenas Sister como sua eterna confidente, ele temia que chegasse o momento em que não poderia proteger seus filhos deles mesmos, do mundo e especialmente dos humanos, que a cada dia idolatravam menos os Ghouls e a ele mesmo, ao longo dos anos eles vinham se tornando arredios e prepotentes. Mas por hora, ele estava mais do que ciente da força que tinha. Seus Ghouls viveriam eternamente, mas para isso, suas desavenças precisariam cessar.

-Meu Water, você realmente tentou mesmo ou apenas se retirou acanhado ao primeiro grito raivoso? E agora, mesmo com essa ligação que possuem agora, você novamente tentou? Com essa criança dual? Espíritos pequenos e infantes precisam de criação, ele não será diferente, vocês precisam se resolver para que isso possa acontecer da melhor forma que vos caber, não coloquem o pequeno no meio dessa batalha particular, por mais que ela seja ainda tão viva e ardente aos dois. Vocês são maiores do que o passado que tiveram. Façam isso por esse futuro que agora corre descalço pelos meus gramados, mas façam também por vocês, que merecem a tantos milênios desfazer essa mágoa que tanto os machuca.

Rain o olhou cheio de cansaço e dúvidas, suspirou pesadamente, ele queria resolver isso e talvez ali fosse o lugar perfeito, onde eles, teoricamente, não poderiam golpear um ao outro, não com Emeritus tão próximo, nenhum deles era louco a esse ponto.

-Tentarei, prometo que tentarei mais uma vez e quantas necessárias forem.

Emeritus ficou com ele em um profundo silêncio confortável e Rain agradecia essa proximidade, pois lhe trazia alento nesse momento dúbio, o dava confiança e coragem para tomar uma decisão.

Antes que o Senhor da Lua atingisse o centro do céu, todos cearam satisfatoriamente com o Criador e foram encaminhados para seus quartos, sendo que Fire ocuparia o mesmo que ocupou na infância e ainda tinha muitas de suas velhas coisas. Na verdade, todos os Ghouls possuíam um quarto e espaço único ali, mas apenas para suas breves passagens naquele reino, diferente de Fire que fez daquele quarto seu lar por séculos. Noto foi acomodado junto dele, pois o quarto de Rain era feito de pedras frias e fontes de água corrente e o menor não gostava tanto de frio quanto o Water Ghoul, ele era feito de calor, como seu o outro pai, "Vany", como ele o chamava tão doce sempre que o via.

Rain adentrou seu quarto escuro, confortável aos seus olhos e deitou-se em sua cama que permitia que parte do seu corpo ficasse submerso em água límpida e calma, como uma rasa banheira, ele amava esse quarto, tinha sido feito unicamente para ele, tendo sua alma como referência, de uma forma mais perfeita e aconchegante que o quarto em seu próprio palácio e por mais que o tivesse tentando replicar, não havia obtido êxito, era algo que apenas Emeritus conseguia, como tudo o que ele criava, era especial, sublime e divino.

A noite avançava com sua escuridão e por mais que tentasse dormir, logo percebeu que era impossível, sua insônia se tornando hábito, as palavras do Papa ecoavam em sua mente. "Façam por esse futuro que agora corre descalço pelos meus gramados", ele precisava tentar, mas não apenas por Noto, mas porque seu coração sempre esteve quebrado desde o fatídico dia em que decidiu expulsar Fire, até então Dewdrop, do seu Reino. O que ele fez fora cruel, Fire ainda era jovem enquanto espírito, Rain tirou tudo dele, segurança, propósito, família e por mais que tivesse motivo para aquela ação, por mais que apenas estivesse executando suas leis, como várias vezes já havia feito, não conseguia não sentir-se culpado pelo ato tão brutal que teve com aquele com quem hoje dividia um pequeno Ser.

Levantou-se e sentiu os pés molhados tocarem as pedras irregulares e geladas abaixo dele, como uma caverna, realmente aquele ambiente não agradaria Noto, mas lhe era tão reconfortante que quase chorava. Vestiu um roupão azul bordado com estrelas e saiu do quarto o mais silenciosamente que pode, não que tivesse medo de ser visto, mas aquilo era tão íntimo que não queria outros olhares e ouvidos participando. Atravessou os longos corredores, o quarto de Sodo ficava em outra ala aquecida e alta, onde os archotes de luz reinavam, iluminando cada ponto. Por sorte, todos estavam adormecidos e as criaturas noturnas não costumavam aparecer desse lado do palácio, facilitando sua passagem sem interrupções. Ali estava, a porta de madeira escura, como se queimada, com o símbolo do fogo talhado grosseiramente no alto, emanando um calor brando, Rain levou a mão bater, mas a deteve antes que entrasse em contato com a superfície, temeroso, o que iria falar? O que poderia dizer? O que poderia pedir? Deixara seu orgulho de lado para vir aqui, mas não fazia ideia do que precisava fazer, como poderia pedir para Fire esquecer o passado? Não podia, seria cruel um pedido desse! Mas como poderia pagar pelo seu pecado para com aquele Ghoul infernal? Não havia volta, em nenhuma de suas ações, ele não chegou a tempo, não salvou Ery, o exilou de tudo em seu momento de maior sofrimento, assinou sua sentença sem pestanejar. Rain se afastou, encostando o corpo na parede atrás de si, deixando-se escorregar até o chão, suas mãos nos cabelos, as palmas nos olhos, ele chorava pela própria impotência, pela fraqueza, não só com ele, mas com Noto também, por ter cogitado se livrar dele quando Cumulus assim sugeriu, por medo, por ter aceitado o que Air havia feito a ele e que ainda refletia tanto em sua vida e na vida dos seus, em como ele era o Ghoul mais débil de todos, pois Fire sentiu Noto e veio sem questionar, ele o amou desde o primeiro segundo e antes dele, enquanto Rain veio ao Papa com a intenção de devolvê-lo após obter suas tão desejadas respostas, mesmo ele sendo claramente seu. Que dignidade ele tinha para continuar carregando a coroa de Elemental da Água se não possuía coragem para bater numa maldita porta e tentar corrigir seus erros? Que tipo de entidade ele era? Que tipo de pai ele seria para Noto nessas condições? Que honra havia em sua alma agora?

E então, uma onda quente atingiu seu rosto, juntamente com uma luz alaranjada, a porta aberta, Fire com um semblante confuso fitando o outro no chão.

-Que porra é essa, Water? Erraram onde jogar o lixo?

Rain apressou-se em secar os olhos com a manga de sua roupa, se colocando em pé sem ter brio de olhar para frente. Ele provavelmente o havia sentido ali, seu cerne o denunciara.

-Eu...eu vim ver como o Noto estava, você ainda não passou nenhuma noite com ele e achei que poderia estar com problemas com o temperamento dele...

-Pois ele está dormindo maravilhosamente bem, obrigado e boa noite.- respondeu rispidamente voltando para o quarto e fechando a porta com um baque seco.

E ali estava ele na mesma situação, a dura porta fechada, as palavras engasgadas em sua garganta, a pouca coragem lhe esvaindo como veios que fugiam pela terra e no fim sempre era medo. Baniu Fire por medo, permitiu que seu corpo e alma fossem marcados por medo, fugiu de uma guerra por medo, nunca realmente tentou conversar com ele por medo, parou naquela porta por medo, voltou ao seu quarto por medo, chorou em sua cama por medo.

Nesse momento, sentia-se muito mais uma Gota de Lágrima do que o Senhor das Águas.

Waterdrop Firedrop (Rain x Sodo)Onde histórias criam vida. Descubra agora