As penas de um corvo

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Vi-os afastar-se sem sequer despedir-se de mim ou dar-me alguma palavra de agradecimento, onde apenas a senhora Yeleni curvou-se antes de partir. Eles eram ridículos.

Ghouls elementais... podiam ser a origem de praticamente tudo, até mesmo a minha origem, mas não passavam de crianças mimadas brincando de serem reis, serem deuses, mas eles certamente ainda não sabiam nada sobre a vida, mesmo que tivessem milênios nas costas, eles, todos eles, eram apenas peças em um tabuleiro quebrado e cada vez mais cheio. Eles não eram absolutamente nada. Não para mim, outros seres menores eram de muito mais interesse que eles, como o próprio filhote que tanto procuravam.

Suspirei, mudando de forma, voando alto pelo céu escuro, sentindo o vento correr por minhas penas, em um claro alívio, finalmente livre daquele chão que mais parecia uma prisão para mim. Ah, se eles soubessem! Se vissem 1% de tudo que eu via a todo momento, a cada segunda da minha longa vida, se vivessem mergulhados em memórias de todos os seres, de todas as raças, de todos os tempos, se eles pudessem ao menos imaginar, mas eles não aguentariam, eles mal conseguiam lidar com uma jovem entidade, mal eram capazes de perceber os próprios sentimentos, eles mal tinham controle sobre seus próprios reinos e servos. E pensar que eram eles que me davam ordens.

Patético. Simplesmente patético.

Eu me perguntava qual seria a reação deles ao finalmente descobrirem o estado de seu filhote. Eu o havia visto a poucos dias, mas não podia interferir, eram as regras, eu só podia registrar, nunca interferir, nunca modificar. Isso já me doeu profundamente quando era eu o jovem filhote desse mundo, mas hoje eu já não tinha mais grandes sentimentos para com isso, mesmo sabendo da crueldade de tantas coisas que eu era obrigado a presenciar, a ver, a ouvir, sentir. Esse era o preço de minha função. Eu era um amontoado de desesperos, traumas e cóleras e eu não podia deixar com que nada me atingisse, nada poderia tocar meu cerne, ou eu não suportaria e se eu partisse, não haveria mais ninguém para lembrar do que realmente importava nesse universo, para lembrar a todos quem éramos, quem deveríamos ser, nossas reais funções.

Mas sim, agora eu temia pelo pequeno.

Steamboyz estava fraco naquele espaço gélido, parecendo apenas uma lembrança de quem ele já havia sido. Seus chifres azuis haviam sido arrancados, o que o faria assemelhar-se a um reles humano, não fosse sua pele ainda mais translúcida do que o comum, em um tom amarelado doentio, frio, revelando um grande emaranhado de veias de sangue e vapor que corriam cada vez mais lentamente em seu corpo, corpo esse coberto de hematomas esverdeados, assim como seus pulsos e tornozelos em carne viva pelos grilhões que o mantinham prisioneiro. Seus olhos já não tinham vida, seus cabelos, agora curtos, eram de qualquer cor, menos brancos, ensanguentados onde seus chifres um dia existiram, seus lábios arroxeados estavam partidos, bem como sua língua seca. Sua voz já havia sumido, sequer lágrimas existiam, seu corpo reduzido todo gasto de água ao essencial e isso lhe faltava em abundância. Água. O filho direto da Água agora definhava em sequidão, parecia prestes a partir, quebrar-se a qualquer toque. Air o havia privado das essências de seu cerne, ela o estava matando pouco a pouco, o estava torturando, o estava fazendo implorar pela morte.

-Precisa aguentar mais um pouco, Steamboyz- sussurrei certa noite, abaixado ao seu lado- Seu destino não acaba aqui, seu livro ainda possui muitas páginas, Versas me mostrou.

Eu não sabia se ele me ouvia, ele apenas gemia de dor e eu sequer deveria estar falando com ele, mas era verdade, minha irmã Versas possuía o livro do destino dessa criança e ele ainda era infinito e com histórias que eu precisava ver acontecer, Steamboyz ainda seria grande, faria um feito nunca dantes visto, ele traria coisas de grande valia a esse mundo, mesmo que eu não conseguisse saber ainda exatamente como o faria, aquilo ainda não se traduzia para mim, mas eu tinha certeza do que havia conseguido ler, ele traria a Sanidade e o Divino a esse mundo, só precisava de mais tempo, mais experiência.

Mais uma chance.

Fire e Water só precisavam conseguir-lhe mais uma chance e apesar de tudo, eu torcia por eles. Torcia a ponto de estar disposto a quebrar algumas regras. 

Quão mais alto eu voava, mais o frio me tocava, mais eu sentia meu sangue parar e eu gostava da sensação, era a única forma de fazer minha mente sempre em constante combustão se acalmar, era a única forma que eu tinha de poder pensar apenas no que eu queria, ver apenas o que eu desejava, fazer aquelas explosões de memórias cessarem.

Eu era Corvinus, eu era Dhers, o Espírito Mensageiro, o Espírito das Memórias. E seria eu a registrar o desenrolar de toda essa história.

Do Vapor ao Microcosmo.

Seria eu.

Waterdrop Firedrop (Rain x Sodo)Onde histórias criam vida. Descubra agora