Chifres

53 8 9
                                    

“Steam… Spirit… Noto… do Vapor… De cabelos e olhos brancos… e chifres curtos… e azulados… Steam Spirit…”

A pequena criança repetia esse mantra constantemente, já tão exausta, tinha medo de esquecer quem era a qualquer momento. Não tinha forças para usar seu vapor, nem alguém para chamar seu nome, não havia mais cabelos ou chifres, só lhe restava manter sua essência em sua mente, agora tão fraca, tão distante, quase perdendo o fio, vagando sem rumo, sem caminho.
A primeira noite havia sido terrível, talvez se o tivessem jogado direto na cela teria sido mais gentil. Cumulus ordenou que o banhasse e o vestisse como um príncipe, mas a cortesia parou ali. Ele estava esgotado pela viagem, sem comer, sem descanso, além das agressões físicas e psicológicas, ele passara a acreditar no que lhe era dito a todo momento. Ele merecia esse tratamento, merecia por ser um erro, por ser um engano da natureza, uma confusão enquanto função, nem no tempo certo havia nascido, tudo apontava para que ele fosse uma falha. Fogo e Água? Não era possível, o ódio entre eles era a prova, não havia como nascer algo bom dessa união.
Ele não deveria existir.
Mas se sentia culpado por não querer desistir da própria existência, ele não tinha essa determinação, essa convicção. Queria viver, queria tanto viver, ele sentia que ainda precisava existir, que ainda havia propósito, mas não conseguia imaginar qual, o porquê, seus pensamentos eram um pandemônio sem fim, corroendo-o.
Após estar novamente limpo e arrumado, ele foi levado para uma mesa de jantar, um banquete servido, tão convidativo e ele estava faminto, sua boca salivava, mesmo sendo um espírito e podendo sobreviver sem alimento por um bom tempo, ele precisava repor suas energias, seu vapor custava muito, ainda mais agora, tão jovem, praticamente um recém nascido. Mas no momento em que ele levou as mãos aos talheres, Cumulus ordenou que fosse imobilizado por um espírito de ar, deixando-o totalmente sem movimentos.
-Essa comida é apenas para os Senhores do Castelo, Ratinho. Caso se comporte, talvez possa ficar com os restos.
Aquilo era torturante e essa provavelmente era a intenção e ele não pode evitar desatar em prantos, enquanto Cumulus listava cada coisa em que ele atrapalhava a vida de seu pai, Water, contando sobre como ele era feliz antes do pequeno Vapor surgir. Ela era filha dele, não é? O conhecia, o conhecia há séculos, ela sabia o que dizia e pouco a pouco, Noto se via acreditando, o fazendo ter certeza que fizera o certo em partir, ele tentava imaginar em como os pais estavam aliviados dele finalmente ter ido embora. Pensava em Rain finalmente podendo partir para o reino da Água, voltando a cumprir seu afazeres como Ghoul e Senhor daquelas terras, finalmente em casa, com os seus, sem mais brigas com Sodo, sem discussões, sem desafetos e Sodo não precisaria mais suportar espíritos de água em seu casarão, poderia seguir sua vida do seu jeito, assim como todos a sua volta, que claramente estavam incomodados com a atual situação.
Tudo ficaria bem agora.
Quando por fim Noto foi solto, Cumulus havia sentado ao seu lado, suas lágrimas já haviam secado, ele não ousava se mover, esperava as ordens, ele aprendia rápido.
-Um bom ratinho!- dizia a garota, bagunçando os cabelos sujos do irmão, servindo um pouco de caldo em seu prato. Aquilo não seria suficiente para sustentá-lo, mas ele o tomou como se fosse a mais deliciosa das refeições, estava desesperado por aquilo e mesmo já frio e sem nenhuma sustância, ele agradeceu constantemente, levando mais um tapa, sentindo sua pele queimar. Sua voz não era bem vinda ali, mesmo que estivesse se humilhando.
Depois de algumas horas, ele foi levado, mas mesmo que ele quisesse, não conseguiria lembrar o caminho, ele apagou em diversos momentos, sendo arrastado pelos corredores.
Seu quarto era pouco mais que um cubículo, uma cama, uma mesa, mas algo faltava: uma parede, um grande vazio em direção ao abismo, ventando constantemente, um frio cortante, fazendo Noto arregalar os olhos, temeroso, se encolhendo, seu instinto o fazendo se agarrar ao ser ao seu lado, que apenas o chutou para dentro, fazendo o cair, onde ele, o quão rápido pode, se arrastou para o canto oposto àquele buraco do céu, agora negro, sem estrelas, sem nenhuma luz e naquela noite, ele chorou dormindo.
Mas seu sono foi agitado, o vento o assustava, e mesmo distante, ele tinha medo de se mover desacordado e cair naquela lacuna. No meio do dia seguinte, ele pegou o cobertor puído da cama e o colchão e tentou montar um ninho no canto do quarto, não havia travesseiro e a cama era pesada demais para que ele a movesse e criasse uma muralha entre ele e aquela ameaça. Ele tentava aquecer seu corpo, mas seu vapor vinha tão fraco, corria tão devagar em suas veias, o deixando lento, grogue, letárgico, tudo o que ele recebia eram dois pequenos pães por dia, revelando um novo problema: se ele se distraísse, pássaros apareciam para roubar seu pouco alimento.
E quando Cirrus, o pesadelo realmente começou.
Ela veio até ele, parecia tão carinhosa, se abaixou até ficar em sua altura, em seu cantinho seguro, acariciou seu rosto com seus dedos que lembrou-lhe garras de águias, ela agarrou seu queixo, como se o analisasse com calma e então seus olhos voltaram-se para seus pequenos chifres e aquele sorriso cruel sumiu de sua face, seu semblante transformando-se em um furacão furioso, o encarando com nojo, o empurrando para sua coberta, saindo apressada, e, ao passar pela porta, conversou com um rapaz que a esperava, dando a Noto uma última olhada de repulsa.
-Você não deveria ter herdado os chifres do meu querido Rain…
Noto nunca havia passado por tanto terror, quando sentiu seu chifres serem serrados, toda sua curta vida lhe passou diante dos olhos, ele gritou e esperneou e mesmo que isso dificultasse o trabalho de seus captores, eles fizeram questão de mantê-lo acordado, sempre o recuperando quando desmaiava, não fazendo nenhuma ação sem que ele estivesse consciente. Chifres eram o orgulho de um espírito, então ao arrancá-los, eles arrancavam também qualquer honra que ele tinha com sua função, com seu ser, com seu cerne e sua raça, além que sim, ele amava como seus chifres eram semelhantes aos de Rain, sentia-se tão bonito, um espiritozinho de água, filho do próprio Senhor das Águas. Sem eles, ele sentia-se menos que um humano e isso era humilhante, mas por fim, tudo o era.
Nos dias seguintes, Cirrus ordenou que a comida fosse reduzida, Noto precisou vencer o medo do abismo para coletar água do primeiro dia de chuva, passou a gostar da companhia dos pássaros, mas logo perdeu a voz, não podia mais falar com eles, o vento se tornou o único som. Logo, passou a ser acorrentado durante as precipitações, claro, a água, além de matar sua sede, lhe era revigorante e poderia ser uma brecha para que Rain o sentisse, era arriscado, era perigoso e lhe foi privado, junto com novos ferimentos em seus pulsos e tornozelos, sua pele já tão sensível e desidratada, seu tom já doentio.
Cada dia era uma eternidade e cada tortura era interminável, fossem provocações, fossem agressões e quando Noto já perdera a contagem dos dias, se agarrava unicamente ao seu mantra, recitava-o por horas, encarando o céu do dia ou da noite, uma vastidão de nuvens sempre encobrindo o horizonte, privando-o de qualquer distração, qualquer pingo de prazer.
Naquele dia, havia lhe chegado a única refeição que teria, um pão e um copo d’água, já nem se apressava mais em pegar, aprendera a lidar com a dor lancinante em seu estômago terrivelmente vazio, já se devorando, ele já conseguia ignorar o gosto de sangue de sua boca partida pela secura, ele aprendera a se refugiar no fundo da sua mente, em um lugar só seu, sem medo ou privações, então, quando naquele dia, ao tocar a água nos lábios, quase deixara de perceber a leve ondulação que existia nela, talvez mesmo em boas condições a tivesse perdido, mas aquela leve vibração em sua língua o fez despertar de um transe e ele choraria se ainda tivesse lágrimas, pois ele sabia, ele sentia e só poderia ser uma coisa.
Rain estava por perto.
Seu pai viera resgatá-lo.
Ele ainda deveria existir.
E mais do que tudo, ele quis acreditar que era amado.
Ele era amado.
Ele era amado
Ele era amado.

Waterdrop Firedrop (Rain x Sodo)Onde histórias criam vida. Descubra agora