Os meses se passaram, a primavera logo despedia-se, dando espaço ao veraneio que chegava forte, agitado, quase que impaciente, como se o tempo lhe fosse hostil, como se tivesse pressa em se por, em estar, em existir, em ser.
E tinha.
Não, não o verão em si, mas seu senhor, o Fire Ghoul, tão ansioso pelo solstício de sua estação, que agora parecia demorar-se de propósito, ignorando completamente a ânsia que ele apresentava, quase implorando por sua antecipação. Estava nervoso, quase não podia conter-se em si, comandando os preparativos para a festa ele mesmo, em uma vã tentativa de distrair-se, de achar que tinha algum controle daquela situação, de seu cerne agitado, ansioso, voltado para um lugar distante, mas que ele esperava, já não tão longe dali.
-Está tudo bem, Mestre Sodo? Está tão inquieto- perguntou Agni, sempre atenta àquele homem, o qual perseguia com seus olhos durante toda manhã, esperando que em algum momento, seu olhar devoto fosse retribuído com um mínimo de carinho.
-Sinto falta de meu filho e ele logo voltará para casa. Meu cerne explode em saudades do pequeno. Ele deve ter crescido tanto em minha ausência- respondeu em uma meia verdade. Sim, a falta de Noto lhe ardia forte, apertando-lhe o peito, mas não apenas dele, com certeza não apenas dele.
-Não compreendo porque o Senhor das Águas também foi convidado, Mestre. Ele não pertence a esse lugar, nunca irá pertencer... O garoto já é grande, pode ser conduzido por serviçais até nosso reino, um de nós poderia tê-lo buscado em segurança.
Fire a encarou, sabendo que ninguém em sua corte ou fora dela sabia da mudança de sentimento entre aqueles Ghoul Elementais. Para eles, ainda havia o ódio e o desgosto, a briga constante e o desafeto, nenhum deles sequer cogitava que no meio daquele lodo havia surgido o amor, como uma flor de lótus, florescendo da forma mais improvável, em um terreno incerto. Ainda não sabia como eles reagiriam aquela mudança tão drástica em sua história.
-Ele é pai do meu filhote e creio que depois de tantos milênios, já podemos ao menos ter um convívio civilizado, nem que seja por Noto e também pela união dos Ghouls, já que desde Air... Enfim, ele virá e peço que o trate minimamente com educação, Agnis. Afrontas não serão mais toleradas.
Dizendo isso, ele a fitou seriamente, erguendo a sobrancelha e ela percebeu que ele sabia de seu encontro com Water a tantos meses atrás, de seu ataque de fúria contra o Senhor, quando tentou tomar-lhe a joia encantada que o próprio Fire o dera de presente.
-Eu... eu só queria...
-Eu sei, minha criança da lava, eu sei, mas não posso aceitar que isso aconteça novamente, compreende? Ele é um Ghoul, um Deus no Ghost, nós gostando ou não e se eu o tenho como convidado, então é meu dever proteger sua estada sob meu teto. O fogo não pode ser tão impulsivo quanto nos pintam, somos bem criados em meu Casarão, afinal.
Ela desviou o olhar, era tão claro quanto as chamas, algo estava mudando ali, em seu mestre, algo que apenas ela, sempre tão atenta a ele, tão apaixonada, perceberia. Ela sempre soube que esse sentimento era loucura, talvez a condenasse, mas seu mestre já havia se entregado a outro espírito comum, não é? Um secundário, como ela. Ele era diferente dos outros nobres, ele não se importava com posições, hierarquia, ele a tratava como uma igual, então como poderia não ter esperança que um dia ele a olhasse? Que um dia notasse seu amor e a correspondesse? Mas agora, o ouvindo chamá-la de "criança", ela sentiu um choque que até então não se dera conta. Não, ele não a via como igual, não nesse sentido, para ele, ela não passava de uma de suas crianças de fogo, que corriam pelo Casarão, que sentavam com ele à mesa da cozinha, que lhe cumpriam as ordens em troca de um pouco de atenção e com dor, ela notou a doçura no olhar amarelo daquela entidade, não em direção a ela, mas perdido entre os preparativos do evento. Muito mais do que uma doçura paternal direcionada a chegada do filho, era outra coisa, um brilho que ela reconhecia dos próprios olhos.
Era amor.
E ela não pode evitar o grunhido baixo que escapou de sua garganta quando percebeu o que se passava, em um redemoinho vertiginoso, que a fez recuar alguns passos, tonta, fazendo-a sentar. Tudo parecia fazer um doloroso sentido, como se de repente uma luz furiosa invadisse a órbita de seus olhos até então fechados. A afobação com a festa, além do que lhe era comum nos outros anos, a longa estada no Reino d'Água e a tristeza em seu retorno, a cartas enviadas com grande frequência, não apenas ao filho, as quais ela própria, como mensageira pessoal dele, encaminhava aos corvos, seus súbitos banhos de chuva e a própria existência dessa com uma frequência anormal, mesmo para a época.
Desde sua volta, era comum vê-lo aos pés do lago, por vezes aventurando-se a pequenos mergulhos, seguro perto da borda, seu olhar brilhante em seu escritório, como se sonhasse acordado e ela poderia jurar que o vira trançar um ramo de flores em seus longos cabelos dourados, desistindo quando percebeu que não sabia como fazê-lo, mas com um sorriso extremamente amoroso emoldurando seus lábios finos.
Ele não mais odiava o Water Ghoul.
Ele estava enamorado por ele.
Sempre, sempre um maldito espírito de Água!
Ela se levantou, apoiando-se onde pode, antes de correr para longe, desviando de todos os espíritos que, agitados, colocavam-se em seu caminho.
-Agni!- disse um dos servos quando ela passou, segurando seu braço- A carruagem do Water Ghoul já adentrou os terrenos, avise ao mestre e prepare vossa recepção.
Seu ser se encheu de fúria, a lava fervendo em suas veias, correndo ardente, em ebulição, trilhando em uma destruição interna de seu corpo infernal. Ela pisava duro, recusando-se a seguir a ordem, indo para ala dos criados, onde ficava seu quarto. Seu quarto pequeno, simples, diferente daquele que seria ofertado ao novo convidado, não apenas um quarto, um andar inteiro. Para ele e sua pária, o grande culpado por tudo que estava acontecendo. Se Steam não existisse, seu mestre ainda abominaria Water, ainda o culparia por todas as desgraças que passou em sua vida, ainda o manteria fora de suas terras. Mas agora o pequeno demônio os unia, os aproximava, fazia com que despertassem sentimentos que deveriam ser seus, seus, que sempre servira fielmente, sempre esteve disposta a tudo pelo seu Senhor, por um ínfimo pedaço de seu amor quebrado. Ela poderia ser tão intensa quanto Ery foi, melhor, seria melhor que qualquer espiritozinho de água fraco, que jamais poderia provar de todo fervor que apenas seu povo conhecia, de um corpo forte, uma alma resistente. Apenas fogo seria capaz de amar fogo, apenas dois seres em chamas poderiam conhecer a intensidade daquele elemento. Water teria o mesmo destino do antigo amante. Seria condenado a dor e seria o único responsável por sua própria ruína. Era isso que ele merecia.
Ela afundou em sua cama, onde tantas vezes imaginou estar o Mestre do Fogo, fantasiando seu perfume em seus lençóis, que, com vergonha admitia, já havia roubado das lavanderias, apenas para ter uma parte dele para consigo, envolvido em seu corpo, como um abraço perverso, que agora sabia, nunca teria, nunca seria seu.
Ela chorou lágrimas quentes, que queimaram-lhe a face, enquanto escutava a movimentação intensa dos andares acima, onde alguém cumpria seu papel diante dos visitantes, sabendo que precisaria explicar-se assim que seu mestre a questionasse sobre o motivo que a levaram a não cumprir sua função.
Mas agora ela apenas queria afundar, sozinha, em seus próprios pesadelos solitários.
Até que uma ideia surgiu.
E ela o faria.
Por despeito, mas faria.
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Waterdrop Firedrop (Rain x Sodo)
FanficUma história de Ghost, mas em um mundo de alta fantasia! Lembrando que será Rain X Sodo/Dewdrop E se os Ghouls fossem seres elementais de um reino mágico comandado por Papa Emeritus? E o que aconteceria se uma nova criatura surgisse trazendo o caos...