Pecado

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Ersa, por ser o primeiro espírito do Orvalho, possuía a habilidade de se comunicar com seu criador, Water, através das águas das folhas e o fez tão rápido quanto pode, ele também amava Ery como sua cria, bem como a todos ali, que demonstraram suas preocupações, enquanto Dewdrop observava apreensivo outros espíritos tentarem curar o ferimento que ele mesmo havia causado. Era maior e mais fundo do que ele imaginava, tomava seu tronco, seu quadril e sua perna esquerda, a carne parecia apodrecida, negra e vermelha, sangrava, além do pus que se formava, o cheiro já insuportável, seres de água eram mais frágeis ao fogo, especialmente criaturas como os orvalhos, tão singelos e delicados, sensíveis ao mundo e Dewdrop chorava silencioso no canto da sala, enquanto acompanhava aquela batalha pela vida do seu amado sem poder fazer absolutamente nada, sem sequer poder segurar sua mão, falar-lhe que tudo ficaria bem, ele mesmo já não tinha essa certeza e isso lhe sufocava.

Sua mente era um caos sem sentido, transbordando em todas as direções, sentia raiva e nojo de si pelo que fez, culpa, desespero, angústia, temor, se eles nunca tivessem se amado, se entregado, Ery estaria bem agora, estaria feliz com alguém como ele, não uma aberração de um fogo descontrolado como ele se sentia agora, um monstro sem destino, incapaz de dominar sua própria função no mundo. Ele não era uma dádiva dada por Emeritus, nunca foi, nem mesmo na infância, ele era um pecado descartado, um erro, uma escória deformada...

-Dewdrop, concentre-se!

O grito de um ancião o despertou, ele estava superaquecendo o lugar, mais uma vez atrapalhando, dificultando a vida daqueles seres que lhe deram tanto por séculos, que haviam lhe dado tudo que ele podia desejar para ser feliz. Por mais que isso pudesse doer, assim que Ery fosse curado, ele se afastaria dele, nunca mais queria correr o risco de ferir alguém dessa forma, ainda mais por amor, esse amor cruel e cheio de dor, que parecia ser tudo que ele poderia oferecer.

Mas como uma previsão macabra, foi apenas dor que veio a seguir daquela noite...

Quando a manhã se fez fria, não houve orvalho sobre as folhas e ou nos campos verdejantes, todos estavam focados em guiar sua energia para aquele filho ferido, se o Water Ghoul não respondesse ao chamado, planejavam levá-lo a Emeritus, mas já tinham ciência que ele não sobreviveria até lá, era muito para ele suportar, ele sequer teria forças para sair dali.

Antes mesmo que o Sol estivesse a pino, o corpo de Ery já não possuía mais vida e já estava tão gélido quanto as águas do riacho que amava, os anciãos, já em luto, conseguiram ao menos ocultar parte da grande cicatriz que dominava seu corpo inerte e, após isso, permitiram que Dewdrop se despedisse a sós do seu amado, uma última vez. Ele passou horas abraçado ao corpo vazio, recitando as juras de amor que tanto trocavam ao nascer de cada manhã e ao cair de cada noite, seus planos para um futuro que nunca chegaria, ele se recusava acreditar no que havia acontecido, no que ele havia feito, na ajuda que nunca chegou. Se recusava a acreditar que nunca descobririam o que água e fogo podiam criar com amor, a semente que nunca brotaria naquelas águas, tudo o que ele tinha era aflição e sofrimento, era remorso, culpa, raiva. Ele estava imerso em um mundo que só pertencia aos dois, desde pequenos, sempre juntos, de como ele teria permanecido sozinho se Ery não tivesse enfrentado suas chamas naquela floresta, sem medo, sem pestanejar, de como Ery sempre o defendia quando queimava algo sem querer, mesmo que fosse ele próprio, ou quando brigava com algum outro espírito, de como ele unia seus chifres com vinhas e flores, como se fosse uma coroa suspensa, de como ele sempre fora sua Luz da Manhã, em todos os momentos, até mesmo no último.

A porta foi aberta fortemente, a luz invadindo, era isso, seu tempo tinha acabado, o corpo seria levado ao rio, para onde todos os orvalhos retornavam, mas quando se virou, não eram seus conhecidos que estavam ali.

Eram soldados. Soldados da Corte das Águas.

Eles vieram em sua direção e o agarraram pelos braços, colocando-o em pé à força. O que estava acontecendo? Ele sabia o que havia feito, mas todos haviam entendido que fora um acidente, ninguém além dele mesmo o culpou ou condenou. Quem eram aqueles? O que estava havendo? Ele tentou resistir, mas foi em vão, eles eram fortes e resistiam até mesmo ao seu calor.

Waterdrop Firedrop (Rain x Sodo)Onde histórias criam vida. Descubra agora