Ciclo

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Nossa jornada levou mais tempo do que o previsto e quando finalmente voltamos, a Lua já estava alta nos céus, iluminando nosso caminho, Noto dormia pesadamente com a cabeça em meu colo, sua pequena mãozinha agarrada a minha calça com força, ele se comportou muito bem durante todo passeio e as visitas, mesmo sendo entediante em diversos momentos, mas eu poderia dizer que ele foi recebido com honra pela maioria dos senhores que o conheceram, mas minha gotinha flamejante já estava exausta de tanto me acompanhar e caminhar, de tantas interações, ele merecia seu descanso.

Ao entrar no casarão, o levei no colo até seu quarto com cuidado para não acordá-lo, ele todo encolhido em meus braços, o dedinho na boca, eu o admirava, admirava sua pureza, sua inocência, amava sua personalidade, tão parecida com a minha, mas com traços claramente do Rain, além das partes que eram só e apenas dele, algo totalmente novo, algo totalmente pertencente ao Vapor. Ele seria um espírito e tanto, sabia que o seu destino seria grandioso, eu podia sentir, ele exalava isso a todo momento, seu destino estaria recheado e surpreendentes histórias. Delicadamente, coloquei-o na cama em seu quarto, ficando com ele alguns instantes, garantindo que estivesse confortável naquele ninho de cobertas quentes. Eu achava graça, enquanto dormia tranquilo, pequenas nuvenzinhas de vapor se soltavam do seu cabelo e de sua boca, fazendo parecer que ele fervia constantemente. Baguncei carinhosamente seus cabelos e depositei um beijo no alto deles, dando uma última olhada para a minha pequena gotinha antes de fechar a porta o mergulhando no escuro que ele gostava, tal qual seu outro pai. Um fogo no escuro, quem diria.

No corredor, encarei a porta fechada do quarto do Rain, pensando em como ele se sentia tão distante do seu próprio reino, mas minha atenção foi desviada para as vermelhas portas duplas ao final do corredor que estavam entreabertas e com e a luz dos archotes acessa, era a pequena biblioteca dedicada aos visitantes. Caminhei até lá, a fim de apagar as luzes bruxuleantes, mas ao entrar, vi Rain sentado em uma das poltronas centrais, dormindo torto, com a boca aberta, encolhido com os pés na almofada, os joelhos quase tocando o peito, tinha um livro preso entre os dedos, pendurado, quase caindo ao chão. Ele parecia vulnerável, cansado, tão exposto, frágil, nem parecia ser quem era, nem parecia o grande Water Ghoul, de repente, ele me pareceu infinitamente mais velho do que de costume, mesmo que sua aparência não tivesse mudado uma única ruga desde a primeira vez que o vi. Em seus cabelos de noite, o presente que eu lhe havia oferecido, trançado delicadamente entre seus fios, as flores de sangue se destacando no fundo escuro, ele não havia colocado mais nenhuma flor viva, apenas aquelas flores de ouro e rubi feitas pelas minhas próprias mãos e isso mexeu comigo de um jeito estranho, que não entendi naquele momento, mas fez meu cerne dar um salto involuntário, como um espasmo. Reparei mais nele, era diferente vê-lo trajado como um espírito de fogo, inteiramente de negro, sem seu azul característico, os longos e fortes braços expostos que, se olhasse de perto, era possível ver gotículas se formando em sua pele clara, aquilo parecia ser tão antinatural, mas tão atraente ao mesmo tempo que meu olhar estava fixo nele antes que eu notasse. Mas que merda eu estava pensando? Atraente? Balancei a cabeça querendo afastar aquelas ideias tolas, ele não passava de um Ghoul idiota, que cuidava muito bem de Noto e me vinha sendo gentil, mas ainda idiota. Idiota, cruel, maldoso, eu nunca esqueceria o que houve, não importava quantos milênios viessem, mesmo acreditando nas palavras dele, sem nem saber porquê acreditava, não fazia sentido acreditar. Ele sempre fora o motivo de toda minha dor, dos meus traumas, de muitos dos meus medos que eram fortes até hoje. Seria preciso muito mais que um momento dentro de um rio para mudar isso, muito mais que uma conversa e uma criança, não era possível mudar, eu acreditava que não, era ainda tão latente, não queria que deixasse de ser, parecia um desrespeito a memória de Ery deixar de sentir esse vazio torturante. Eu já não sabia mais o que sentir, meu cerne estava confuso e doloroso, parecia que iria sair do meu peito a qualquer momento e quando percebi, uma lágrima fervente escorreu pelo meu rosto indo até meus lábios

-Sodo?

Rain acordara e me olhava sonolento, que péssima hora para despertar e me pegar nesse estado deprimente, virei-me de costa, esfregando as costas da mão nos olhos, expulsando aquelas lágrimas que teimavam em rolar, caminhei até a porta, mas senti uma mão úmida agarrar meu pulso, sem força, mas firme. Eu poderia me soltar, mas não quis.

-Sodo...

-Vá para o seu quarto, Rain, vai acabar destruído se ficar dormindo desajeitadamente  assim. Posso pedir para que uma cama seja trazida para cá, caso tenha achado um lugar relaxante para o seu descanso.

Ele se espreguiçou demoradamente, alongando os braços, esticando as pernas, revelando seu abdômen sob a camisa curta.

-Ela realmente fez isso?

A pergunta simplesmente pulou da minha boca. Ele me olhou confuso, ainda sob efeito do senhor do sono Chair, então me aproximei, colocando as mãos em sua cintura, na pele fria, erguendo novamente o tecido leve, um cicatriz diagonal atravessava de suas costelas até seu quadril, deixei meu polegar seguir por ela, sentindo a textura irregular, saltada, seu corpo tremeu de leve em minhas mãos, mas não recuou, pelo contrário, ergueu ainda mais a camisa, revelando seu peito, com várias cicatrizes menores, brilhantes.

-Fez...cortes com ar, ela fazia questão que não sangrassem, para que meu corpo estivesse inteiro para ela...ela me ameaçava e eu não sabia o que fazer...Não entendi como o amor se tornou isso...temia por meu povo, por Cumulus, por ela mesma...No fim, algo em mim ainda queria protegê-la, nem que fosse dela mesma...Eu a amei até o fim, só não da forma como ela gostaria...

-Não consegue restaurar a pele? Você é o melhor nisso, não é?- perguntei em um sussurro, sabendo a resposta, mas sendo inevitável perguntar.

-Não, eu tentei, tentei tanto...quis sumir com essas marcas, essas lembranças, fiz de tudo, mas foram fundas demais, repetidas demais, levei muito tempo para conseguir trabalhar nelas, era tarde demais. Mas hoje são só isso, marcas e lembranças, já não doem mais. Não tanto.

-Fisicamente ou mentalmente?

Ele olhou minhas mãos, que ainda o tocavam sem pudor ou maldade, não era algo íntimo, ao mesmo tempo que era.

-Você sabe que certas dores nunca passam, especialmente se vindas de onde era simplesmente  amor...Certas dores nos marcam, de uma forma ou outra...

Nos olhamos ao mesmo tempo, nossos rostos tão próximos que eu podia sentir sua respiração fria contra a minha morna, seus olhos eram tristes, mesmo que sorrisse tentando transmitir alguma tranquilidade, sua tristeza era tão clara quanto minhas chamas. Era triste, tudo em nós era e sempre fora, com exceção de Noto, tudo parecia um grande amontoado de azares e crueldades impostas pelo Destino e pelo Tempo, parecia que nossos passados iriam nos definir por toda eternidade que viria, parecia que nunca fugiriamos desse maldito ciclo de angústia e dor, era um jogo infernal e eu estava exausto dele e sabia que ele também, os milênios de sofrimento me corroeram dia após dia, hoje eu suportava por minhas crias derivadas do fogo, e agora com Noto, meu filho direto, meu filhote amado...mas eu gostaria de voltar a ser aquele espírito de orvalho, que banhava seu corpo despido na luz do sol nascente, que sorria sempre a todo momento, que tinha sonhos, que tinha planos, que era só um espírito de fogo errante encontrado ao acaso em uma floresta molhada, não um Ghoul Elemental cheio de tantas responsabilidades, tantos carmas, tantos pesos, tantas expectativas Eu não aguentava mais segurar isso dentro de mim, não aguentava mais querer manter tudo dentro de mim, eu explodiria em milhões de pedaços, então permiti que o choro viesse livre por fim, mesmo silencioso, mas imparável, como um grande incêndio, abracei aquele ser na minha frente com força e ele retribuiu na mesma intensidade, com carinho e ternura, ele ficou ali por todo tempo que eu quis, que não foi curto, sem perguntas, sem comentários, sem se desvencilhar, sem brincadeiras, sem qualquer palavra, apenas nós e minhas lágrimas impulsivas em seu peito. E mais uma vez, ali estava eu, afundando em seu corpo, buscando sua proteção, sua cumplicidade, como naquele dia no rio. Mais uma vez eu ia contra tudo que eu falava com tanta soberba, sobre o detestar do fundo do meu cerne, do fundo de minh'alma. Mais uma vez eu confiava nele sem motivo aparente. E mais uma vez ele se oferecia sem pestanejar, sem pedir por nada, sem esfregar isso na minha cara, mesmo eu o odiando, mesmo ele sabendo disso

E agora eu não sabia se odiava mais a mim ou a ele. Eu não sabia mais nada

Waterdrop Firedrop (Rain x Sodo)Onde histórias criam vida. Descubra agora