AMY
Vilarejo de Inuitville, 5h50m
Aproximo-me do caixa da conveniência/mercadinho e único "posto" de combustível da localidade. Diariamente, saio para caminhar às 5:20 e hoje aproveitei para comprar alguns itens.
A lojinha costuma abrir às 5:30. Joe Carlson, o simpático mestiço de 45 anos e estatura mediana, é também o dono deste comércio, o mais antigo e relevante daqui. Ele atende sozinho até as 7h, quando chegam seus dois ajudantes.
Além de mim, há somente uma pessoa, aguardando o Sr. Carlson, que se ausentou por uns instantes. O homem à minha frente não é daqui; na certa um viajante que está só passando. Ele é alto e corpulento, veste jeans escuro e um moletom preto, o capuz escondendo-lhe o rosto. Parece inquieto e bufa.
Se fosse em outras circunstância, me assustaria pensando que seria um ladrão, mas aqui, neste povoado minúsculo e desconectado do mundo, ninguém vem roubar, não.
O desconhecido dá sinais de cansaço, põe as mãos nas costas curvando-se para trás, se endireita, movimenta e massageia o pescoço, e para corroborar meu próximo pensamento, seu estômago ronca alto pela terceira vez em 1 minuto.
Finjo que vou olhar algo numa prateleira mais adiante, para tentar vê-lo e meio que me espanto. Não que seja feio, mas é um pouco chocante. O que deu pra ver de sua face é, em parte, coberta por cicatrizes de uma queimadura.
Imagino quanto sofrimento passou e sinto uma pontada no peito, pois de sofrimento entendo bem.
Sou discreta e ele não percebe que estou olhando. Passa o antebraço na testa para limpar suor e noto que está trêmulo. Suas mãos também tem marcas de queimaduras. Ele as enfia e tira dos bolsos, num movimento nervoso.
Passo por trás, me dirigindo a outra prateleira e seu estômago praticamente grita, de novo. Ele aperta a blusa na altura da barriga, como que tentando fazer parar o barulho. Estou quase certa que não tem dinheiro e deve estar sem comer há pelo menos 2 dias.
Sei do que falo, pois já estive nessa situação mais de uma vez.
Conheço os "sintomas": tremor, suor frio (o clima aqui está ameno, ainda não são 6h da manhã, não tem porque suar); inquietação, irritação, o estômago roncando.Decido levar mais algumas coisas e volto a circular, quando o senhor Carlson volta e logo escuto partes entrecortadas do diálogo dos dois. Eles falam baixo, o atendente é amigável e simpático, enquanto o gigante tem voz grave, seu tom é pesado. Consigo entendê-lo reclamando, parece que vai explodir de nervoso:
- ... não é possível, isso não existe, esta cidade é um buraco negro!!! Vocês vivem no século passado??? -ele reclama, parece com ódio.
Observo de longe e ele está passando as mãos nos olhos, muito chateado. Ouço senhor Carlson tentando explicar para ele como as coisas funcionam aqui.
Depois de mais algumas frases que não consigo entender, o desconhecido o interrompe:
- Ok, ok, já chega, estou indo, isso não vai dar em nada mesmo, que inferno! - fala bufando e sai pisando duro.
Pouco depois chego ao caixa:
- Bom dia! -cumprimento o homem que está sempre com barba por fazer- O rapaz tá estressado? -pergunto, sem conter a curiosidade, enquanto ele vai somando minhas compras.
- Bom dia, minha jovem. Sim, está sem dinheiro em espécie e não tem como sacar, não é? Como não trabalhamos com cartão, transferência, essas coisas, se chateou. Ele é desse pessoal moderno, que faz tudo pela internet, celular, computador...
Sim, aqui somos totalmente analógicos
Ele continua:- O grandão ofereceu várias formas de pagamento que não aceitamos, mas enfim, você sabe como funciona. Ele está de passagem e não sabia como era. Expliquei e até ofereci um pouco de combustível pra ele chegar na cidade e me pagar na volta, mas ele é bem orgulhoso e disse que não precisava da caridade de ninguém.
São U$ 67,50, senhorita -conclui.-Que pena -respondo, já lhe entregando o dinheiro.
Inuitville, esse lugarzinho bucólico no extremo leste do Canadá, nem mesmo aparece no mapa. Descobri esse pequeno paraíso por acaso, através de uma colega de trabalho.
Aqui, sinal de celular e internet são precários, só pega em alguns pontos da estrada e inclusive, para chegar até lá, é preciso pegar uma estradinha no "meio do mato", por mais ou menos 30 minutos.
Além disso, o único meio de pagamento é dinheiro, não há máquinas de cartões de crédito, bancos ou caixas eletrônicos.
Na estrada, os poucos locais que recebem cartão, são extremamente distantes, já pertencem a outro território, e quase sempre, os equipamentos que são antigos, dão muitos erros ou vivem quebrados.Exceto pelas roupas, tudo aqui parece ter parado no tempo, vive-se como há 5 décadas.
Para quase todos, assim como esse rapaz, aqui é considerado chato e ultrapassado; mas é perfeito pra mim, um lugar que quase ninguém sabe da existência.
Não sei ao certo mas deve ter uns cento e poucos habitantes. Conheço a maioria de vista, cumprimento todos, sei o nome de alguns, mas não tenho amizade com ninguém. Minha casa é a mais isolada e prefiro assim.
Sou bióloga e veterinária. Cuido de animais daqui e de criações de outras cidades, cujos responsáveis providenciam meu transporte, já que tudo é muito distante; também presto serviço para algumas empresas que pedem análise de documentos científicos e outras coisas da minha área.
Neste caso, envio a papelada para o correio da cidade mais "próxima", Knainsfield, que no caso, fica há cerca de 6 horas de carro. Lá tem banco e caixa eletrônico, é onde todos daqui vão quando precisam sacar dinheiro. Também tem melhor acesso à internet e telefone, hospital e outros serviços.
A cada 10 ou 15 dias, os comerciantes daqui se revezam em ir até lá, fazer compras para abastecer os negócios e resolver quaisquer outros assuntos.
Daí, quem precisa vai junto, ou envia suas demandas por um deles.Saio carregando minhas 4 ou 5 sacolinhas e vejo o dito homem próximo ao carro que creio ser dele. Como está meio que no "meu caminho" vou me aproximando. Parece furioso, fala sozinho e a sua voz sai quase gritada:
-Maldito fim de mundo, a pessoa morre nesse inferno se não tiver dinheiro físico!!! -brada, indignado, chutando o pneu do carro -que fome desgraçada... ah, merda!- resmunga, pondo a mão na altura do estômago e em seguida soca a lateral do veículo.
Nisso, já estou bem perto, estou receosa com o jeito dele, mas ainda assim, as lembranças do que já passei me dão coragem e ao invés de passar direto, paro ao seu lado:
-Bom dia, moço, posso ajudar?
Ele vira pra mim e em segundos vejo em seu olhar raiva, espanto e novamente raiva. Agora ele está de frente e... oh, céus, sob a luz do dia, vi claramente, mais da metade do seu rosto é coberto por cicatrizes, seus lábios também foram, em partes, danificados, a parte inferior do lado esquerdo e o superior, do lado direito, tem só metade da espessura, o que lhe dá o aspecto de que sua boca seria torta.
Seu olho esquerdo é meio caído e quase fechado, a pálpebra também é uma grande cicatriz, que sobe pela testa, mas não posso ver bem até onde vai, devido o capuz. Apesar das marcas aposto que ele tenha pouco mais de 30, mas menos de 40, talvez algo em torno da minha idade.
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Monstro
RomansUm incêndio o deformou por fora e destruiu por dentro. Ele se vê como um monstro. A dor da perda e o medo da rejeição, o motivaram a tornar-se um hacker habilidoso e também um assassino, cujas vítimas são os algozes de inocentes. Ela não é mais um...