A salvação em uma caixa de sapatos

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Eu enviara uma cópia do inventário de joias de minha mãe, transcrita, de meu próprio punho, à casa de lorde Stretford havia dois dias. E desde então, não obtivera retorno dele.

Contudo, meu tempo se findara. Hoje meu irmão traria o ourives para avaliar as peças em minha posse. E com isto também, eu acreditava, ele finalmente revelaria a razão por trás deste interesse repentino em nossos bens.

Mas eu não estava apreensiva com a razão para sua mudança de interesses. Logicamente estava aflita por mim. Eu havia passado toda a tarde do dia anterior revirando as gavetas de minhas cômodas e guarda-roupas, como se o gesto pudesse magicamente trazer de volta as peças que eu havia penhorado. Como se fazendo isto, eu pudesse encontrá-las perdidas entre traças e mofo.

Agora, faltando menos de duas horas para que meu irmão chegasse com o ourives, eu já havia me entregado à única tarefa que me restava fazer: rezar. Meus joelhos já reclamavam da dor de estarem em contato com o piso duro de madeira de meu quarto. Eu fazia questão de não ajoelhar por cima de um tapete ou almofada. Eu desejava aquela dor como forma de penitência, pois sabia que eu me encontrava na situação em que estava por única e simples culpa minha.

A bem dizer, todo tipo de infortúnio pelo qual eu passava era uma punição aos meus pecados. Ainda assim, eu acreditava que a misericórdia divina era a única capaz de conceder o perdão a um pecador e por esta razão, eu me apegava a este fio de esperança de que no fim de tudo, meus pecados seriam remitidos.

Enquanto eu sussurrava, na tentativa de que Deus ouvisse minhas preces, eu me lembrei das palavras dele: "quero que saiba que eu não desistirei tão facilmente".

Eu pequei ao interromper minha oração para questionar em voz alta:

– Mas se não desistiu, por que não me dera mais sinais? Por que não me enviou um recado, por que não apareceu mais?

Eu estava sendo injusta em colocar a responsabilidade de minha salvação nas mãos de lorde Stretford. Eu mesma havia deixado claro que não queria que ele se sentisse coagido a me ajudar.

Porém, a verdade é que o que eu dissera a lorde Stretford eram palavras vazias. Palavras que não representavam o que eu realmente pensava, o que desejava, pois...

Há quanto tempo eu não me via diante de uma amizade fiel? Há quanto tempo alguém não me fazia sorrir como ele me fizera em alguns poucos momentos? Há quanto tempo eu tinha alguém empenhado em me fazer visitas?

Sentia-me sozinha e infeliz desde o fim de minha história com Kyle. E pensando bem, eu não podia negar que quando meu amigo aparecia, meu dia transformava-se.

Meu amigo.

Primeiro, eu ri, depois, recriminei-me por não estar tentando proferir mais orações ao invés de ter estes pensamentos. Era mais sábio de minha parte parar de pensar em lorde Stretford, ou minha lista de pecados só aumentaria.

Eu puxei o ar lentamente, pronta para entoar mais um pedido aos céus quando ouvi batidas na porta.

– Entre, por favor.

A senhorita West, uma das criadas de casa, entrou com cautela em meu quarto, admirando-se ao me ver ajoelhada no piso de madeira, os cotovelos apoiados na cama.

– Milady, uma velha malvestida e rechonchuda está no portão e pede para vê-la. – Ela fez cara de desgosto ao anunciar a estranha visita.

Eu não pude pensar em outra pessoa. Só poderia ser a senhora Bentley!

– Ela disse seu nome? – Perguntei, sem delongas.

Se a senhora Bentley estava ali, era porque algo grave havia acontecido. Tínhamos um trato de que ela jamais me procuraria além dos domínios de Whitechapel. Era arriscado demais que nossa relação, e por consequência, o abrigo, fossem descobertos por minha família. Assim, se meu braço direito estava ali em Mayfair, significava algo urgente, para dizer o mínimo.

Flor de East EndOnde histórias criam vida. Descubra agora