Um coração machucado

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[Sophie]

Enquanto as rodas da carroça do senhor Lincoln rangiam pelos paralelepípedos das ruas escuras e malcheirosas, meus lábios formigavam. Lorde Stretford havia os despertado de um sono profundo, de uma escuridão que eles jamais deveriam ter deixado.

Um erro. Um terrível e catastrófico erro.

Que não tornaria a se repetir.

Depois daquilo, eu passei o caminho todo com os braços envolvendo meu próprio corpo, protegendo-me do vento frio que rasgava mais uma noite cinzenta em Londres e do ardor que parecia ameaçar me corroer por dentro.

Saltei da carroça quando ela enfim chegou à equina da Whitehall Street e me despedi do senhor Lincoln, que fora gentil em não ter pronunciado palavra alguma durante o trajeto, sem querer saber qualquer detalhe sobre a discussão que presenciara.

Eu me apressei em encontrar a senhorita Margot, que me aguardava no portão lateral, e com sua ajuda, percorri os corredores da casa e subi as escadas até meu quarto.

Quando fechei a porta atrás de mim, enfim sozinha, apoiei as costas na madeira entalhada e fria, sentindo-me exausta.

Fechei os olhos com força, disposta a fazer aquele formigamento cessar, mas a única coisa que consegui foi visualizar a cena mentalmente. As mãos quentes de lorde Stretford tomando meu rosto, seus lábios chocando-se contra os meus e nossas línguas desafiando-se.

Eu permitira que ele tivesse tido tal ousadia. Não o repeli quando tive chance, quando claramente ele havia me dado esta escolha. Ao invés de ser sensata, fui de encontro à pior decisão que poderia ter tomado.

Uma tola.

Só alguém desvairado o suficiente cometeria o mesmo erro duas vezes. E lá estava eu querendo seguir pelo mesmo caminho, apesar de já tê-lo saboreado e ter provado do gosto amargo da infelicidade que encontrara em seu fim.

Meu primeiro erro também começara com um beijo. Kyle MacPherson, segundo filho do conde de Fife, visitava Robert, meu irmão, com demasiada frequência naquele verão de 1857. Tornaram-se amigos por intermédio do irmão de Kyle, que frequentava as corridas de cavalo que meu irmão gostava de assistir.

No início, Kyle e eu trocávamos poucas palavras, apenas cumprimentos ou cordiais indagações durante algum jantar ou quando ele estava à espera de meu irmão na sala de visitas. As perguntas em questão eram banais: "O senhor comparecerá ao baile de lorde Whitmore?" Ou "milady irá a ópera na semana que vem? Tenho ouvido muitos elogios a respeito da soprano."

Contudo, os meses foram passando e Kyle já fazia parte de nosso cotidiano. Almoçava e jantava conosco, acompanhava-nos em passeios aos parques, ia conosco ao teatro. E assim, já não podia-se mais dizer que éramos completos desconhecidos. Nossas conversas evoluíram e já não se limitavam a perguntas entediantes. Eu sabia que ele gostava de ler Dickens e ele sabia que eu idolatrava as peças de Shakespeare. Ele me confessara que tinha medo de trovões quando era criança, e eu lhe revelara que tinha medo de palhaços. E em meio a conhecer um a outro, construímos uma amizade.

Mas Kyle era tão bonito com aqueles cabelos castanhos na altura dos ombros, com aquela barba de fios curtos, mas sempre muito bem aparada, que dava-lhe aparência de alguns anos mais velho. Eu percebera desde muito cedo que por onde íamos, Kyle sempre atraía olhares. Somando tudo isso, teria sido quase impossível não se apaixonar por ele.

Nossa história começara com uma ida ao teatro. Meu irmão caíra na cama com febre no dia anterior ao qual havíamos programado uma ida a Covent Garden para assistir a Hamlet. Eu ansiara tanto por aquele espetáculo que pensei que também fosse cair de cama quando meu irmão me informara do cancelamento de nosso passeio. E foi aí que Kyle apareceu e me surpreendeu, propondo a meu pai me levar para assistir à peça.

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