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Lúcifer olhou para o livreto em suas mãos. Era igual a qualquer outro dos milhares que podem ser encontrados na Biblioteca. Nada de especial, fora o fato de que a alma que ele representa havia invadido sua vida e bagunçado as coisas de tal forma que agora ele estava ciente de um potencial problema e tinha de resolvê-lo.

Desde que ela deixou o Palácio, o rei hesitava em ler o livreto, apesar de já ter decidido que deveria. Enquanto pensava, ele tomou banho e fez uma pilha de panquecas, não por sentir fome, mas pela familiaridade, afinal, era um prato que fazia com frequência para Charlie quando ela era mais nova.

Só de pensar em Charlie, o diabo sentia um aperto no peito. Há quanto tempo não falava com a filha? Ele deveria ligar para ela, mas primeiro a situação atual. Não adiantava nada se sua menina percebesse algo errado e ficasse preocupada.

Com um aceno decidido, Lúcifer pegou o livreto e o abriu. A primeira coisa era o nome, não o que ela deu ao se apresentar, mas o real, pelo qual era chamada em vida. Não tinha nada a ver com ela, pensou Lúcifer. Era um nome comum para o país em que vivia. Depois vieram as informações gerais de vida e morte. Dois pais, um irmão mais novo. Algumas brigas de escola; ela tinha um temperamento, ao que parecia. Morreu aos 37 anos em um acidente de carro. Sem filhos, sem amantes, quatro gatos. Caramba, ela gostava de gatos, o que explica a aparência. Atuou um tempo na área da psicologia social antes de começar a trabalhar em pesquisas e escrever artigos acadêmicos.

Lúcifer franziu a testa. Nada disso era razão para cair no Inferno. Era uma vida perfeitamente respeitável. Ele continuou lendo até achar a lista de pecados: falta de fé, blasfêmia, heresia, bruxaria. Aparentemente, ela se afastou da Igreja em que foi batizada, não acreditando na existência de Deus como era pregado. Começou a estudar ocultismo com cerca de 28 anos e, por fim, caiu na bruxaria, realizando rituais e convocando demônios. Além desses, também estavam listado os pecados do orgulho, gula e inveja. Mas em nenhum lugar estava escrito que machucou alguém, percebeu Lúcifer. Sem vinganças, maldições ou nada do tipo.

O rei fechou o livreto. Ele podia ver o porquê de ela ter ido para o Inferno. O Céu nunca aceitaria essa falta de fé e o contato com demônios, mesmo sem ações de natureza maléfica, ainda seria um bilhete só de ida, mas ele estava aliviado. Ela não cometeu nenhum dos pecados mais horríveis, vivendo uma vida relativamente limpa, tirando a bruxaria. A não ser que o ano no Inferno a tivesse mudado muito, não havia por que se preocupar com segundas intenções. A constatação foi um alívio. De fato, ele ficou tão satisfeito que decidiu tentar dormir, sabendo que os próximos dias seriam cansativos.

No dia seguinte, após uma surpreendentemente boa noite de sono, Lúcifer foi acordado por uma batida na porta.

— Majestade, a pecadora retornou e está agora na biblioteca. Devo servir o café da manhã aqui? — ouviu-se a voz de Alfred.

— Ah, não! Eu já vou descer! Sirva o café e alguns petiscos na Biblioteca das Almas! — gritou Lúcifer, saindo da cama.

Lá embaixo, Ylwa havia acabado de se manifestar de sua sombra e estava conferindo as pilhas formadas por seus servos. Alguns minutos se passaram antes de o mordomo abrir a porta e entrar, empurrando um carrinho de comida.

— Sua Majestade se juntará a você em um momento. Fique à vontade para se servir. — disse o imp, gesticulando para o carrinho.

Ela agradeceu e levou a mão até a comida, agarrando algumas coisas e montando um sanduíche improvisado. Desde que chegara ao Inferno, ela estava quase sempre com fome. Era algo que podia ser ignorado por um tempo, mas ficava irritante bem rápido. Com a quantidade que ela estava comendo, Ylwa só podia se alegrar que tudo aquilo se transformava em energia, ao invés de gordura ou outros descartes físicos.

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