26. Como se eu estivesse vivo.

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Seja qual for a matéria de que nossas almas são feitas, a minha e a dele são iguais...
~ Emily Brontï

Narrado por Lorenzo

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Narrado por Lorenzo.

— Aquela é sua paixão de carne e osso? — Sua piadinha certamente me faria rir se eu não estivesse tão fascinado pela forma como Ayla me olhava. Seus olhos pareciam conter um brilho único, tão brilhante quanto qualquer uma das estrelas que eu observava diariamente nessas duas semanas. Digamos que uma alma pendente não tenha muito o que fazer o dia inteiro, então observar estrelas se tornou um novo hobby favorito.

E posso afirmar que todas as vezes em que sentei em sua janela para assistir o show de luzes dos astros luminosos, nenhuma nunca chegou aos pés do brilho que aquela loirinha possui nos olhos.

Ísis esperava uma resposta a sua piada. Uma risada, um comentário ou qualquer coisa que mostrasse a minha atenção. Mas não dei a ela pois estava focado em sorrir. Focado em observá-la e manter toda a minha atenção só para ela. Queria que sorrisse de volta para mim, um sorriso maior, mais iluminado.

O sorriso que raramente aparecia, mas roubava completamente a cena toda vez que um pequeno resquício dele surgia.

Mas não recebi esse sorriso pois sua atenção se desviou de mim quando o garoto cujo seu nariz estava sangrando, cutucou o seu ombro e disse algumas coisas antes de puxa-la até uma das mesas do pátio.

— É realmente impressionante. — A garota dos cabelos curtos de franja que iam até o ombro e os olhos de um tom escuro do castanho, direcionou o seu olhar surpreso para mim. Um olhar que dizia: "está mesmo apaixonado por uma garota de carne e osso". — Está pretendendo ter filhos com ela? Talvez montar uma casa legal e sei lá, trabalhar como garçom de segunda à sexta e às vezes fazer horas extras aos sábados? — Sua voz carregava uma pitada de ironia, mas aquilo não foi suficiente para me abater.

— E se a respostar for sim? Pelo menos eu ainda tenho mais duas semanas na terra não é? Não vou conhecer o inferno primeiro. — Abri um pequeno sorriso debochado podendo contemplar a expressão raivosa que apareceu em seu rosto.

— Acha engraçado debochar da situação difícil das pessoas? — Aquela frase foi a mais hipócrita que já ouvi em toda a minha vida, ou melhor, em toda a minha morte.

— Acha engraçado debochar da situação difícil das pessoas? — Repeti a sua mesma frase, notando quando os seus braços se descruzaram lentamente, seu olhar se desviou envergonhado e ela abaixou a sua guarda. Mas o que a levou abaixar a guarda tão facilmente? Parecia disposta a discutir.

Na verdade, ela parecia o tipo de pesssoa com personalidade difícil. Aquelas que querem sempre estar certas. Aquelas que são cheias de si mesmo, auto suficiente, donos da razão.

Digo isso pois meus pais eram egocêntricos. Mas no caso dela, parecia mais uma garota birrenta que quer ter a última palavra.

— Não, não acho. — Seu olhar se tornou tão distante e sua voz saiu baixa. Me perguntei o que a levou a ficar daquela forma.

— Eu... foi mal, deve ser esquisito pensar que sua alma está a poucos metros de conhecer algo terrível porque você não foi capaz de resolver o seu assunto inacabado. — Em uma tentativa de conforta-la, disse aquelas palavras. Seus olhos viajaram lentamente pelo ambiente, até que pararam em Ayla, que conversava com um menino e uma outra garota que surgiu na mesa gesticulando.

Não sei dizer ao certo o que conversavam.

— Não é esquisito, é agoniante. — Um sorriso triste surgiu nos seus lábios. — É agoniante pois em toda a minha vida, achei que tinha o controle de todas as coisas, até... até me deparar com a morte e perceber que agora eu não tenho controle de nada. Sou impotente. Tudo que eu fiz... não foi suficiente para salvar a minha alma. — Engoliu em seco, fechando fortemente a palma da mão. Parecia querer chorar, mas fantasmas não choram.  — E é ainda mais agoniante ver que meus pais estão sofrendo e eu não posso fazer nada.

— Quantos... há quantos anos você deixou de respirar? — Perguntei, a encarando com certa curiosidade. Agora, ali, me contando sobre como estava se sentindo, não parecia a mesma menina que chegou na mesa de Myel exigindo uma nova frase.

— Fazem exatamente três semanas. — Seu sorriso triste se abriu ainda mais. — Três semanas que eu morri e três semanas que minha alma despertou.

— Mas sua alma despertou no exato momento em que você morreu? — Aquilo foi como um choque para mim. Por que, então, a minha alma demorou dez anos e a dela três semanas?

— Almas despertam antes e outras depois dependendo da pendência que deixou na terra. A minha pendência precisa ser resolvida agora e não precisou se passar muito tempo. — A menina me encarou, ainda com a tristeza nítida nos olhos. — Mas eu ainda não vou desistir. Não posso. Nem em vida eu fiz isso, por que faria em morte? — Devolvi o olhar para ela e sorri, tentando trasmitir qualquer sensação boa.

Estávamos no mesmo barco.
Almas pendentes que se não resolvessem suas cagadas na terra, seriam destinadas a viver no verão eterno.

Ísis desviou o olhar para o outro lado e cruzou os braços. Passou alguns segundos encarando seu lado esquerdo quando parei para visualizar o que ela tanto observava.

Ela observava Ayla levantar de sua mesa. Uma lágrima escorria pelo rosto da menina enquanto apertava os seus passos, segurando firme na alça de sua mochila.

— Acho que sua amada está tendo problemas com a vida. Deveria ajudá-la já que, tanto eu e acredito que tanto você, sabemos o quanto os problemas da vida são tão mais complicados que os da morte. Os da morte você só precisa se preocupar se for uma pendência ou alguém destinado ao inferno diretamente, sem chance alguma de perdão. — Eu a encarei uma última vez e assenti levemente com a cabeça, abrindo um leve sorriso.

Eu acredito que esse seja um "até logo", já que tenho a certeza de que nos encontraremos em breve na próxima etapa do fim da vida se eu não conseguir resolver aquilo que preciso.

Mas sei o quanto quero resolver.
Sei o quanto quero ver minha irmã.

Disparei pelos corredores na intenção de seguir Ayla. Observei quando ela entrou no banheiro feminino e me perguntei porque é que considerava aquele o melhor lugar para chorar. Eu provavelmente pularia o muro da escola e estaria a uma distância consideravelmente grande.

Fazia isso com muita frequência quando ainda tinha pele cobrindo minha alma.

Estendi a minha mão e por um momento hesitei. Será que minha mão atravessaria dessa vez? Será que seria como da primeira vez e tocaria aquele metal?

A fim de responder as minhas perguntas, fechei a mão e bati a porta. Senti o metal gelado contra os meus dedos e um arrepio percorreu a minha alma.

Como se eu estivesse vivo.

Te Encontrei Para Me AmarOnde histórias criam vida. Descubra agora