Quarta Parte (V)

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Nos últimos dias do verão eu me encontrava tenso, ansioso, atemorizado e decidido. Meu semblante estava fechado enquanto andava pela rua principal de Green Rock. Era uma quarta-feira de céu nublado e apático.

Não tivemos outras notícias de tio Herbert ou do dinheiro de meu pai.

Passei o tempo todo irritadiço por causa do que acontecera e pela vergonha que sentira por ter sido um moleque frouxo e não ter feito nada de mais enérgico para tentar recuperar o nosso dinheiro.

Eu sei, sempre poderia voltar em Tortuga e ameaçar o desgraçado, mas cada vez que esse pensamento me assaltava os miolos, eu sentia novamente aquela espécie de covardia... Espécie não. Era a pura e simples covardia. Os restos do meu pai deviam estar se remexendo no caixão de tanto desgosto. E por mais que soubesse disso, por mais que soubesse que o certo era ser violento com meu tio, eu não conseguia. E chegar a essa conclusão me matava um pouco por dentro.

Era com isso na cabeça que me dirigia decididamente ao Saloon G.

E para piorar tudo, cerca de duas semanas antes, havíamos ficado sem dinheiro para alimentar os cavalos devidamente. A loja não rendia tanto, como Harold me dissera.

Eu poderia muito bem enfiar meus cavalos em um pasto qualquer e eles comeriam o capim e o restolho felizes, contudo eu não ficaria feliz. Meus cavalos não ficavam em pastos, e isso seria um regresso na nossa vida. Apenas a primeira pequena privação de muitas que se seguiriam. Não estava disposto a deixar a coisa pender para esse lado em nossa vida. E depois disso, o que seria? Teríamos que vender os animais, seguramente. E depois? Vender a casa, pois o gasto seria demasiado... A coisa apenas pioraria. Por isso pedi um dinheiro ao padre Martin.

Ele se assustou, e eu contei a história de nosso tio, e o padre fez o sinal da cruz diante de um pecado daquele.

Disse que o pagaria, mas ele fez questão de dizer que não era necessário. E acrescentou ainda que estava feliz em me ajudar. Padre Martin era um bom homem.

Mesmo o padre sendo uma ótima pessoa, que gostava genuinamente de mim, senti-me humilhado ao descer os degraus da igreja com seus dólares em meu bolso.

E ali estava eu agora, duas semanas depois, passando em frente a sua igreja, me dirigindo a espelunca da cidade. O padre estava em pé sobre os degraus, diante da porta de sua igreja. Acenei-lhe e entrei no saloon. O saloon era praticamente na frente da igreja. Entrar ali bem debaixo do nariz do padre que tanto me alertou sobre aquele lugar deu-me um pouco de vergonha. No entanto, não havia outra escolha. Já tinha tomado minha decisão.

Tente entender meu lado nessa história toda.

Eu era um moleque que tinha passado por algumas coisas terríveis em pouco tempo. Que admirava aqueles bandidos sujos e desdentados, bêbados e fedorentos. Era um moleque com uma súbita responsabilidade, que ao mesmo tempo via seu lar começar a desmoronar. Que precisava fazer algo para mudar as coisas, para assumir o controle. Era um moleque que tinha visto o seguro mundo em que vivia esfarinhar-se da maneira mais cruel. Que tinha recorrido a caridade para manter a vida que estava acostumado. Era um moleque que havia se cansado daquela merda toda, e iria ter a vida que queria, e precisava. Achava que o único modo da coisa toda voltar aos trilhos, era indo fazer o que estava prestes a fazer. Era a única solução que queria acreditar ser possível, uma vez que nossa loja estava fadada a mediocridade.

No fim das contas isso tudo era apenas a desculpa que procurava.

A despeito de toda angustia e nervosismo que senti no caminho até ali, tudo se dissipou assim que botei os pés na espelunca. Toda aquela atmosfera me fazia incrivelmente bem, e sorri.

Espreitei o salão a procura de Harold, e logo vi uma puta sentada no colo de Boca, que ria e comia um pedaço de toucinho. A garota também sorria, e bebia de uma caneca.

Era fim de tarde, o horário em que a espelunca começava e ficar bastante cheia, pois os homens começavam a deixar os trabalhos e iam ali beber, jogar ou trepar com uma das prostitutas.

Continuei procurando Harold de onde estava mesmo, próximo a porta de vai-e-vem, e de repente pensei no padre, que devia estar ainda em pé na frente da porta dupla de sua igreja. Devia estar na verdade olhando para a porta do saloon, e talvez até conseguisse ver um pedaço de minhas costas além da porta. Dei uns passos adiante para fugir do possível olhar reprovador do querido Martin. Não tinha intenção de magoá-lo.

Finalmente vi Harold surgir de uma porta nos fundos do salão. Provavelmente tinha ido mijar. A latrina ficava ao lado do alpendre onde eu e a provocante Abigail nos beijamos... Comecei a fantasiar outro beijo com ela. Mas como seria possível? Não a via há muito tempo.

- Eldred! – saudou-me Harold ao me ver em pé no meio das mesas, feito um imbecil.

Fui ao seu encontro, tenso.

- Um copo de uísque para o jovem Eldred – pediu ele a Steve, que era moreno, com um farto bigode negro, tinha feições um tanto indígenas, ou mexicanas, não sabia dizer ao certo.

- Gostaria de falar com o senhor– declarei assim que meu copo chegou.

O lugar estava barulhento, e talvez apenas Steve ouvisse algo. Estávamos encostados no balcão.

- Diga, jovem – ele parecia feliz.

Harold usava uma camisa xadrez, com o bolso da frente rasgado. Seu cabelo meio ruivo estava mais desgrenhado do que nunca, e sua barba estava húmida de alguma bebida.

- Lembro que o senhor me ofereceu uma chance de trabalhar – comentei de forma afobada. Acredito que ele tenha notado meu claro nervosismo.

- Está precisando de dinheiro? – perguntou ele, sério.

- Na verdade, prevejo dificuldades. – Não ia dizer que tive que recorrer ao bom coração do padre para manter nossa vida como era.

- Prevê? – estranhou.

- Ficaremos sem dinheiro, senhor – simplifiquei. Não queria entrar em detalhes. Não contaria a ele a história daquele porco filho da puta do tio Herbert. Pelo menos não ainda. Não queria que me visse como uma criança que não sabe resolver seus problemas. Estava lá justamente para isso. Estava tentando me tornar homem de uma vez por todas. Sem mais historinhas ou desculpas. Isso me deixou repentinamente confiante. Se Harold quisesse, eu me juntaria a ele. Se não, acharia outro bando qualquer para seguir adiante.

- Eu lhe disse que aquela loja não era grande coisa. Seu pai buscava recursos em outros lugares.

- Eu sei, senhor. Por isso gostaria de trabalhar aqui. Para buscar outros recursos e ajudar minha família.

Harold presenteou-me com um largo sorriso desdentado.

- Gostaria de se juntar a nós? – ele estava realmente feliz. Perguntei-me o porquê.

- Gostaria, senhor, se ainda me quiser – afirmei com a maior segurança que consegui juntar, uma vez que aquela súbita confiança que sentia estava me deixando rapidamente.

Harold sorria, e então ele gargalhou, pegou seu copo de uísque e apontou para mim, sugerindo um brinde. Sorri e peguei meu copo.

- Um brinde a novos tempos, garoto! Um brinde a novos tempos juntos!

E foi com aqueles dois ardidos goles de uísque que dei o primeiro passo no caminho da perdição. Meu primeiro passo na estrada para o inferno.

***

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Um Caminho Para o InfernoOnde histórias criam vida. Descubra agora