Sexta Parte (I)

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Foi no inverno, no começo do ano de 1857, que minha vida começou a passar por novas mudanças. Não digo que meu caminho mudou, quero dizer apenas que muitas coisas se deram nesse ano. Coisas terríveis, diga-se de passagem. Deus é testemunha do quanto sofri e de quanto sofrimento causei. Confesso que fiz coisas pavorosas nesse ano. Certamente o ano em que cometi mais pecados e matei mais gente. Não pense que digo isso com orgulho. Hoje não, mas naquela época, com vinte e três anos, eu – ainda – tinha algum orgulho dessa merda toda.

Se é que tem algo a ser dito em minha defesa é que, toda aquela autoconfiança, aquele prazer vindo com o poder, todas as belas sensações que sentira nos primeiros trabalhos, tudo isso apenas inflamou drasticamente nos sete anos que se passaram. Na verdade não acredito que isso seja uma boa desculpa. Quer dizer, eu nem ao menos busco por desculpas. Como já disse antes, esses anos sangrentos foram os melhores de minha vida. E os piores também.

Uma chuva chata já caía há uns três dias. O ar estava quente e abafado dentro do Saloon G. Aquela tão adorável espelunca não mudara nada com os anos que se passaram. Apenas mais cadeiras e mesas se quebraram, uma das prostitutas morreu, mas logo foi substituída por uma coisinha apetitosa e jovem; houve até um princípio de incêndio, embora tudo estivesse apagado antes que a terceira labareda se formasse. Steve em si havia apenas ganhado alguma gordura em sua barriga. Ou seja, a coisa toda continuava a mesma.

O único a deixar a mesa quando perdeu, havia sido aquele almofadinha filho da puta do Augustus. Johnse, Bill e Boca permaneciam conosco, esperando que o jogo de pôquer terminasse. Todos estavam meio tensos, e eu não sabia o motivo. Pensei nisso durante toda a primeira hora do jogo. Porém, quando consegui acabar com o dinheiro de Augustus McBride, aquela tensão alheia fugiu de minha cabeça.

Atirei meu par de reis à mesa, realmente esperançoso de que tivesse vencido aquela mão. Eustace Bource, que estava na minha frente, sorriu e mostrou um par de seis, que com o seis de ouros na mesa, formavam uma trinca. Xinguei baixo, tentando demonstrar pouco do meu descontentamento. Tinha perdido vinte e cinco cents naquela mão. Em seguida vi o sorriso de Harold murchar em seu rosto barbudo. Ele não tinha envelhecido tanto nos sete anos que se passaram; apenas sua barba e cabelo se tornaram mais grisalhos, e havia perdido mais dois dentes.

- Filho de uma puta – ele ralhou jogando suas cartas viradas para baixo, indicando que havia perdido.

Todos falavam alto no salão cheio da espelunca para se fazer ouvir sobre a chuva que caía lá fora. Era noite, e minha barriga roncava de fome. Bill, Johnse e Boca estavam ao meu lado, debruçados sobre a mesa redonda, todos aparentemente nervosos, mas como eu estava mais nervoso ainda por ter perdido, não dei importância.

Eustace tinha, nesse ano de 1857, uns trinta e três anos, e ainda conservava o rosto queimado de sol, jovem. Mantinha seu cavanhaque, que agora estava mais farto, seu nariz era fino e seus olhos escuros. Seus cabelos encaracolados estavam oleosos e brilhantes. Ele cuspiu no chão do saloon e puxou seu revólver do cinto, o apontando para a cara barbuda de Harold. Assustei-me, porém pensei se tratar de uma brincadeira, lógico, mesmo Eustace sendo o menos piadista do bando. Harold se empertigou e olhou para mim, assustado.

- Que porra é essa, Eustace? – perguntei em dúvida. Naqueles sete anos havia conquistado o respeito deles todos.

- Erga as mãos, Harold – Eustace ordenou, me ignorando. Harold obedeceu, e vi um certo desespero em suas feições. Olhei para meus demais companheiros. Bill Whitaker parecia realmente fascinado com o que acontecia; Johnse era o contrário. Parecia estar sendo lentamente esfaqueado, tamanha era sua expressão de angústia por ver aquilo. Boca estava sereno dentro do seu casaco marrom, puído e furado. Vi tudo isso, e não vi surpresa em nenhum dos rostos, apenas no de Harold, mas nesse caso a surpresa estava misturada com aflição e até um pouco de medo. Porra, aquilo era uma grande merda! Os quatro contra Harold, e eu ali no meio! Sem pensar muito, fui levando minha mão direita lentamente para o quadril, onde no coldre estava o velho revólver do meu saudoso pai.

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