Nona Parte (VII)

20 6 0
                                    

É bem verdade que não demorou muito para que a trégua entre eu e Matilda terminasse. E perceber isso desmoronando aos poucos era como ver minha ilusão de paz se apagando. Nas duas semanas que se seguiram, o relacionamento em casa foi azedando-se aos poucos. Uma hora um falava algo aqui, que o outro ignorava. Em seguida era a vez do outro dizer alguma coisa maldosa, e assim por diante. A situação foi ficando estragada até que ficou insustentável em um jantar. Chovia. Lembro que chovia.

- Estou com saudades de Vival – disse Suzanne outra vez. Eu apenas ignorava. Ela falava tanto isso, que se falasse mais três vezes, eu a mandaria se calar. – Como ela está? Eu digo, fisicamente. Como ela está?

- Parece-se com Jenny – simplifiquei.

Comíamos feijão, batatas e um pedaço de carne porco.

- Pobre Jenny – comentou Suzanne. – Ainda me lembro daquele dia. De como ela ficou...

Acho que ela notou que me retraí tenso na mesa.

- Muitas coisas aconteceram – falou Matilda, já com azedume. Olhei para ela e depois olhei para meu prato. – Foi uma época terrível.

Ninguém disse nada por um tempo. Ouvia-se apenas o som da chuva e barulho dos garfos e facas raspando nos pratos.

- Tanto sangue foi derramado – provocou Matilda, já que ninguém disse nada.

- Foi uma época horrenda – ecoou Suzanne suavemente.

Minha respiração alterou-se um pouco. Sabia que elas queriam conversar sobre meus crimes, sobre a morte de Augustus e Jenny. Desejavam confrontar-me, colocar-me contra a parede. Matilda queria me ver sofre simplesmente por ser Matilda, e Suzanne gostaria de me punir para que eu pagasse por ter ido embora daquele jeito, acho. Isso que me fez ficar mais sentido, a participação de Suzanne.

- Você continua fazendo o que fazia, Eldred? – Matilda disparou me olhando com aqueles olhos azuis e ameaçadores. – Só para eu saber.

Suzanne ajeitou-se na cadeira. As duas seguravam seus talhares, mas não mais os movimentavam.

- Fazendo o quê? – já começava a sentir-me acuado, e por isso enfiava cada vez mais comida na boca.

- Roubando e matando gente – Matilda esclareceu para mim. Nessa noite ela usava os cabelos soltos.

Terminei de mastigar, e quando engoli, enfiei outra garfada entre os dentes.

- Não – respondi de boca cheia.

- Duvido – contrapôs Suzanne, e isso foi meio horrível. Se fosse Matilda duvidando, tudo bem, mas Suzanne era demais. Como defesa, fiquei com ódio. Todo o velho ódio vermelho subiu como não subia há anos. Subiu e fervilhou dentro da minha cabeça.

- Foda-se que duvida! – gritei, espalhando pedaços de batata e carne na mesa.

Suzanne estremeceu e ficou me olhando espantada. Matilda sorria.

- Aí está o velho Eldred – ela acusou com aquele sorriso de puta miserável na cara, que de repente se contorceu em uma careta de fúria. – Aí está o velho assassino!

- Mataria Augustus de novo! Mataria aquele filho da puta outra vez se ele por milagre aparecesse aqui! – agora eu estava tentando apenas feri-la por tudo que havia feito. – Sua puta desgraçada! Mataria aquele bastardo engomado outras três vezes pelo que ele fez com Jenny!

Suzanne fungou, e pela primeira vez na vida tive aquela minha vontade de matá-la usando a comida da mesa. Bateria com sua cara gorda no prato até ela ficar meio inconsciente, e então a entupiria de batatas até sufocar.

- Foi você quem a matou! – berrou Matilda, já com os olhos cheios de lágrimas. – Foi você! Você acabou com essa família! Ninguém mais além de você!

- Sua puta... – sibilei por não saber o que dizer exatamente. Afinal, de algum modo, o que ela dizia era verdade.

Matilda sentiu a vantagem.

- Foi você, seu demônio maldito! Foi você quem a matou, quem matou meu Augustus – a essa altura as lágrimas desceram pelo seu rosto. – Foi você quem matou o meu amor! Entende isso? Não tinha o direito de fazê-lo! Você destruiu a minha vida!

- Porque ele destruiu a minha! – acho que eu tremia um pouco.

Suzanne soltou outra fungada indignada.

- Você decepou o tio Herbert! – Matilda prosseguiu. – Seu monstro! Você arderá no inferno para toda eternidade! Não haverá misericórdia para você! Seu imundo!

- Matei porque ele nos roubou! – tentava me defender, porém sabia que estava em desvantagem. Minha vontade mesmo naquela hora era de dar uma bofetada na cara de Matilda.

- Isso não justifica o que fez com ele! Seu demônio! – Matilda estava transtornada. Soltava toda sua fúria mantida por vinte anos dentro de si. – Nossa mãe morreu por desgosto do que você causou!

Suzanne me olhava, e fungou em concordância.

- Por que você está concordando, sua porca gorda? – gritei para ela. Suzanne assustou-se. Coitada dela. Por mais que ela me odiasse também, assim como todos, não consigo ficar com raiva dela por muito tempo.

- Cale a boca, seu bode velho! – ralhou Matilda, ainda a todo vapor – Você acabou com todos! Sabe que devia ter acontecido com você? Você devia ter sido atropelado por aquele trem no lugar daquele menino! Devia ter perdido mais do que um olho pelo que fez! - Suzanne fungou outra concordância - Devia ter morrido quando paguei para que te matassem! Sua praga maldita! Nunca devia ter voltado! Devia estar morto!

Ela passou as mãos trementes pelo cabelo, e antes que ela terminasse o movimento, eu soltei toda minha raiva, humilhação, ódio... tudo que estava guardado por dezenove anos, em uma bofetada com a mão esquerda – a mais fraca -, em seu rosto. Ela gritou, e Suzanne também. Depois se fez silencio.

Eu agora estava agitado, raivoso e ainda humilhado e deprimido.

- Agora escute, sua puta – falei baixo. – Eu é quem devia ter metido uma bala nesses seus miolos anos atrás.

E assim fui até o quarto e peguei a mala com meu tesouro. Quando estava saindo, ouvi Matilda sibilar:

- Devia mesmo.

Nunca mais pisei naquela casa.

***

Obrigado pela leitura! Se curtiu, vote, comente e divulgue, pois vai me ajudar bastante! Valeu!



Um Caminho Para o InfernoOnde histórias criam vida. Descubra agora