Terceira Parte (II)

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O funeral se deu dois dias depois. O corpo de Bob foi levado em um caixão de madeira fechado, obviamente. Ninguém gostaria de ver aquele horror que o garoto tinha se transformado. Praticamente toda a cidade foi no cortejo que levou o pequeno caixão para o cemitério. A mãe de Bob usava um vestido negro, com um guarda-sol negro, e era amparada pelo pai do menino. Os dois estavam péssimos, e a mulher parecia lívida, sem acreditar que naquele caixão estavam os restos de seu filho mais novo.

Eu fui com minha família inteira e todos vestiam vestes escuras na manhã quente do fim de junho. Padre Martin ia à frente, com um chapéu preto e uma bíblia. Jenny estava logo atrás de mim e chorava, tentando se conter. Sua avó, a senhora Bernadete Harper, a abraçava. Deixei-me atrasar um pouco, e a velha sorriu para mim e deixou-nos andando a sós.

- Você está bem? – perguntei abraçando Jenny com um braço por cima dos ombros, assim como Harold tinha feito comigo no dia do cigarro. Eu gostaria de dizer que não pensei em nada além do sofrimento dela e do meu próprio. Gostaria de dizer que nenhum pensamento pecaminoso – segundo padre Martin – me veio à mente, porém estaria mentindo. Quando a abracei, imediatamente senti-me estranhamente feliz e excitado com aquilo. Estava tão perto dela, que se quisesse, poderia beijá-la. Se quisesse, minha mão direita, que estava sobre seu ombro, poderia se arrastar lentamente até um seio. Nossa, eu sei que isso é horrível de se falar. Ambos estávamos de luto, Bob tinha tido uma morte trágica e cruel há dois dias, e eu pensando em apalpar as pequenas tetas de Jenny.

- Como poderia estar bem? – ela me olhou com os olhos verdes cheios de lágrimas. Tive que me concentrar na conversa, porque estava louco para beijá-la e confortá-la. – Bob morreu... uma morte horrível! – ela sussurrou.

Revi o corpo de Bob sacudindo-se embaixo trem, e expulsei o pensamento. Era melhor pensar nos seios de Jenny.

- Ele está no céu agora – não sabia se ele realmente estava lá, uma vez que nem sabia direito o que era o céu, e se de fato existia. No entanto, queria animar um pouco Jenny. Por isso comecei a falar o que me vinha à mente. – Padre Martin me disse que ele está com os anjos do Senhor, e que agora irá brincar com seres celestiais... Os anjos.

Ela fungou, e parou de chorar por um momento. Jenny era suscetível a essas conversas religiosas, então continuei:

- Bob era um bom menino, você sabe. Jesus gostava dele, e agora o tem ao seu lado. Bob será bom para Jesus – não sei de onde tirava tanta baboseira, mas Jenny pareceu gostar de tudo aquilo, e por fim sorriu com seu sorriso lhe faltando um ou outro dente em virtude da troca de dentição.

- Acho que Jesus gosta dele – ela me disse sorrindo, e se apertou um pouco mais dentro do meu abraço. Meu coração se aqueceu, e senti alguma alegria naquele dia tão horrível.

Ainda não tinha decidido o quê a trágica morte de Bob significava para mim. Sentia tanta tristeza e tanto choque ainda, que era até difícil pensar em algo mais. Minha mente só se lembrava daqueles momentos. Da corrida dele no pasto, do tropeço, da inércia, e por fim dos sacolejos incomuns do corpo sob as potentes rodas de ferro. E se eu tivesse aceitado apostar corrida com ele? Odiava me fazer essa constante pergunta, porque sabia a resposta. Se eu não tivesse sido um completo imbecil, Bob certamente não teria morrido. Sempre que pensava nisso, meu coração se apertava terrivelmente de culpa e tristeza... e também de raiva.

Não tinha motivos claros para ter raiva de alguma coisa a não ser de mim próprio. Entretanto, direcionava todos esses sentimentos negativos para a raiva. Eu os transformava em cólera, porque era mais aceitável sentir ódio do que culpa. Então sempre culpava o mundo, a vida, e até Deus pela morte de Bob. Por que o trem tinha que estar ali naquela hora? Por que Bob agiu feito um idiota e resolvera apostar corrida naquele dia, com a chuva para deixar o chão mais escorregadio? Por que ele tinha que ter tropeçado justo naquela pedra? Nada disso era minha culpa. Quando eu parava para pensar claramente, achava que Bob tinha se matado, por assim dizer, e isso me dava um pouco de conforto. Mas logo depois me enchia de medo e arrependimentos, que em seguida se transformava em uma raiva sem alvo, e todo o ciclo de pensamentos recomeçava.

Padre Martin foi sucinto com as palavras, e os homens por fim baixaram o ataúde de madeira crua no buraco no chão. Foi horrível ver aquilo, e algumas lágrimas desceram pelo meu rosto. Não olhei para Matilda e nem para ninguém. Queria simplesmente sumir dali. Já tinha contado como Bob tinha morrido para umas trinta pessoas, e sabia que agora outras trinta viriam atrás de mim para saber o que acontecera.

Depois que a cova foi coberta por terra, as pessoas começaram a dispersar pelo cemitério decrépito de Green Rock. O que parecia ser um carvalho fazia sombra a algumas lápides de pedra e algumas cruzes tortas de madeira. O cemitério era pequeno e triste. Eu não gostaria de ser enterrado ali, e realmente duvido que serei, já que não moro mais na cidade, e dificilmente mandarão meu corpo de volta para lá quando me encontrarem aqui, morto.

- Eldred, espere um momento – pediu o padre tocando suavemente em meu ombro.

As pessoas se deslocavam em direção ao arco deprimente que era à entrada do cemitério, inclusive minha família. Todos iam deixando o lugar repleto de gente morta embaixo do chão, restando apenas o padre e eu.

Ele tirou o chapéu preto, a despeito do sol forte, e ficou me olhando tristemente.

Havia me esquivado dele nos dois dias anteriores. Martin ia me falar de Jesus e não estava preparado. Mesmo assim, ali no cemitério resolvi terminar logo com aquilo.

O sol batia nas minhas costas e na cara de padre Martin, que espremia os olhos.

- Como está se sentindo, filho?

- Bem, padre – retorqui sem trair nada, nem culpa e nem ódio.

- Bob morreu – ele disse.

- Bob morreu – afirmei, e senti uma leve vontade de chorar.

- O pobre menino foi atropelando por um trem! – O padre queria me provocar gentilmente para que eu falasse algo. E conseguiu. Mostrei-lhe primeiro o ódio.

- E onde estava Deus quando ele caiu? – uma maldita lágrima atrevida escapou de meus olhos. Não gostava de chorar. – Onde estava Jesus, que ama as crianças inocentes? - Eu realmente considerava Bob uma criança inocente.

- Filho, não queira descontar sua raiva em Deus, não é certo – ele retrucou com a maior calma e carinho. – Jesus ama a todos, e quis Bob ao seu lado.

Por mais que não acreditasse nessa baboseira, me acalmei um pouco graças ao tom afável do padre.

- Nosso senhor escreve certo por linhas tortas, e não podemos julgar as vontades do Todo Poderoso. Temos que aceitá-las e aprender com elas.

- Mas padre, é de Bob que estamos falando – lancei um olhar infeliz para o túmulo onde Bob tinha sido enterrado, que se encontrava atrás do padre. – E se... e se eu... Talvez eu pudesse tê-lo salvado...

Padre Martin me abraçou, e eu chorei um pouco na sua batina negra.

- Não foi sua culpa, filho. Não pode se culpar.

Ali, com a cara enfiada na batina dele, senti-me mais calmo. Ainda assim, havia tudo aquilo dentro de mim, toda aquela densidade, e mais uma vez jogava toda a frustração de ter visto aquela cena horrível e não ter sido capaz de ajudar, para a raiva. Eu canalizava tudo, era melhor assim, me sentia melhor assim.

Afastei-me dele com os olhos vermelhos e o nariz escorrendo. Sequei tudo e funguei.

- Eu sei padre. Está tudo bem... Estou um pouco assustado apenas. Já vai passar – assegurei, tentando de verdade acreditar naquilo.

Ele me olhava com ternura, pena e compaixão. Era um olhar tão triste, que me deu ímpetos de abraçá-lo novamente. Não o fiz. Padre Martin gostava mesmo de mim, eu podia sentir.

Acenei uma despedida e me afastei, saindo pelo arco de madeira escrito "Cemitério de Green Rock", e segui para o norte, para minha casa.

***

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