Quinta Parte (IV)

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O dia seguinte estava chuvoso, mesmo assim fui ver o padre. Precisava falar-lhe antes que ele ouvisse os boatos dos mexeriqueiros que me viram com Harold nos últimos tempos.

No desjejum olhava para Abigail, que sorria libidinosamente para mim. Aquela garota me provocava. Troquei alguns olhares com Matilda, e notei que ela estava um pouco assustada por saber que eu tinha matado um homem. Não era para menos. Suspeito que ela nunca imaginaria que eu, o fedelho, seria capaz de seguir os belicosos passos de Eldred pai. Senti deleite com a ideia de seu espanto. Foi um desjejum feliz.

Depois de alguns instantes em que havia batido na porta fechada da igreja, padre Martin a abriu para mim.

- Eldred! – ele sorriu, jubiloso. – Entre. Você está molhado.

Na verdade usava meu chapéu meio frouxo, e não estava realmente molhado, mas meu casaco de couro estava encharcado, pingando, e minha bota estava suja de lama. Fiz uma sujeira dos diabos na igreja do padre.

Sentamos em um dos bancos duros de madeira.

- É sempre um prazer sua presença aqui, filho – o padre deu dois tapinhas em minhas costas, sorrindo.

Sua barba negra estava alinhada, embora ele apresentasse uma cara amarrotada de sono. Ele usava óculos.

- São novos – comentou orgulhoso, apontando para a armação negra sobre o nariz. – Leio muito. Não creio que Deus ficará descontente por eu me dar ao luxo desse pequeno conforto. É para melhor servi-Lo. Lerei melhor as sagradas escrituras. – Justificou-se, um pouco sem graça.

- Melhorou sua visão? – perguntei curioso.

- Experimente – ele me entregou os óculos. Segurei-os, maravilhado. Era a primeira vez que pegava em um daqueles. Em seguida coloquei-os, e minha visão embaralhou-se na mesma hora. Tudo ficou embaçado. Tirei-os rapidamente, um pouco assustado, confesso.

O padre os pegou de volta, rindo.

- Como consegue enxergar melhor com isso? – estava incrédulo.

- Se ajusta bem a minha visão. Não é perfeito, concordo, mas se ajusta bem. Melhorou minha vida – ele disse colocando os óculos de novo na cara. – Não serve para você, claro. Sua vista é ótima. – Me olhou, e deu mais dois tapas amigáveis em minhas costas. – Me diga, o que o traz aqui?

Engoli seco, pois sabia que o magoaria. Contudo, queria ser eu a dar a notícia.

- Estou trabalhando com Harold – falei subitamente. Não sabia ser suave.

Martin fez uma careta, bem parecida com a que minha mãe fizera na noite anterior. Fiquei triste por eles.

- Está trabalhando? Fazendo o que exatamente? – ele estava cauteloso, mas eu não sabia ser assim, por isso falei logo:

- Roubamos um saloon. Eu ajudei.

Não iria contar que tinha matado um homem. Era capaz de eu matar o padre com uma notícia dessas. Gostaria apenas que ele soubesse o que eu estava fazendo. E a bem da verdade era que aquele assassinato não estava pesando em minha cabeça. Nunca pesou, para ser honesto. Talvez eu já tivesse a alma despedaçada, vai saber.

- Não posso acreditar! – ele parecia incrédulo mesmo. – Você é um bom menino. Eu sei disso.

Ele já estava aflito, e eu fiquei deprimido. Não gostava de magoá-lo.

- Preciso fazer isso, padre. O senhor sabe que não temos mais dinheiro.

- Posso ajudar!

- O senhor nos sustentará para sempre? – indaguei seriamente, olhando em seus olhos por trás dos óculos.

A pergunta foi feita de modo meio brusco, o que não tinha sido minha intenção. Só queria acabar logo com aquilo. Nada que o padre dissesse me faria mudar, e acho que ele sabia disso.

- Não. A igreja não pode sustentá-los para sempre. Mas posso te ajudar a arrumar algum trabalho. Conheço a cidade toda. Tenho certeza que com um pouco de paciência eu te arranjo algo. Te prometo, filho.

Senti um pequeno nó na garganta. Aquela conversa estava me deixando infeliz.

- Não quero nenhum emprego, padre. Eu lhe agradeço. Mas já decidi. Vou arranjar nosso dinheiro com Harold. Tenho bons ganhos – afirmei tentando endurecer o coração.

- Mas o dinheiro é sujo. Existe pecado! Você estará se afastando de Deus! – ele parecia realmente ultrajado. Pobre padre Martin, não podia entender.

- Não posso fazer nada, padre. Meu pai foi assim, e seguirei seus passos – me levantei do banco, para demonstrar que não queria mais debater sobre aquilo. – Pelo menos por enquanto – acrescentei para não tirar todas as esperanças do coração dele.

- Tudo bem, filho. Eu entendo. Faça o que tiver que fazer, mas não se afaste de Deus. No fim, ele é tudo que temos. E se você se afastar Dele, acabara queimando nos fogos do inferno. – Ele fez o sinal da cruz rapidamente.

Não me importava com os fogos do inferno. Não seria essa ameaça que me faria parar de trabalhar com Harold.

- Fique tranquilo, padre, não me afastarei da igreja. Continuaremos sendo amigos – sorri o mais afetuosamente que consegui.

- Claro que continuaremos sendo amigos – ele exclamou depressa.

- Muito bem. Obrigado pela compreensão, padre.

Ele se levantou e ficou na minha frente. Era mais alto do que eu.

- Faça o que tiver que fazer, filho. Peço apenas que pense que isso não é o certo. Não é do agrado do Senhor. É uma vida de constante pecado. – Ele me segurou pelos ombros, me olhando, agoniado. –Desejo-lhe boa fortuna, e que Deus te proteja. Você vai precisar.

Ele fez o sinal da cruz para mim, e beijou minha testa.

Saí da igreja na chuva e voltei para casa, pensando nas palavras agourentas do padre e da minha mãe.

Cozinhei aquilo em meus miolos por um tempo enquanto a chuva tamborilava no meu chapéu. Para dizer a verdade, não me importava muito com aquilo. Quando cheguei em casa essas preocupações se reduziram a nada. Certamente continuaria trabalhando com Harold e levando minha vida como achava que tinha que levar. A despeito de qualquer agouro.

***

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