Força (Rethes)

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EU NÃO ME LEMBRAVA da última vez que tive um sono tão bom, em uma cama confortável. Para ser franca, eu podia ficar ali pelo resto da minha vida - eu sei, eu sei, há menos de algumas horas eu estava super chateada com aquele pessoalzinho dali... mas, convenhamos que, se você tivesse no meu lugar, também estaria agradecido por ter um lugar agradável para passar a noite. Eu adormeci no mesmo instante em que me deitei, mergulhando em um sono profundo.

Em meu sonho, eu estava de volta à ilha no espaço, sob uma árvore muito bela, cujas folhas eram cor-de-rosa - uma daquelas árvores que mudam a cor de sua folhagem conforme as emoções, mas não lembro o nome agora.

O dia estava lindo; raios de sol passavam pelas frestras das folhas, e banhavam a grama de um tom amarelado. Eu podia inspirar e expirar profundamente até ficar tonta, que nunca me cansaria do perfume das flores que pontilhavam os arbustos. Por um instante, pensei que não estava mais em Liberty; que havia morrido e ido para o paraíso.

Me levantei, arriscando alguns passos. Meus olhos não acreditavam na beleza que viam, e isso fazia meu coração se encher de felicidade.

- Therry!

A voz ecoou por todos os lados, e eu rodopiei em busca do dono. Era uma voz masculina, que me chamava em forma de um demorado sussurro.

- Therry! - gritou, em desespero - Therry! Therry, Therry, Therry, Therry...

Engoli em seco, me sentindo aguniada. Cobri os ouvidos com as mãos, enquanto a voz que chamava por mim ia ficando cada vez mais exigente, apavorada e grave. O verdadeiro som da angústia.

- Therry! Therry!

Desabei de joelhos, balançando a cabeça. Aos poucos foi conhecendo a voz que tanto me gritava, e as lágrimas se acumularam em meus olhos. O sol sumiu; as flores murcharam. Tudo de repente ficou feio e sem cor, sem vida, sem alegria.

- Therry!

- Nããão! - berrei, com todas as minhas forças - Kyl! Kyl...

Eu já chorava como um bebê quando o cenário sumiu e eu apareci em uma cabana humilde, sem nenhuma mobília, apenas paredes gastas e mofadas e um assoalho sujo.

Era a minha casa.

Diante de mim estava um garoto; seu cabelo branco estava completamente desarrumado, e os olhos eram duas esferas negras como a noite; suas roupas eram verdes e pretas, tanto o casaco, quanto as calças. Mesmo que eu passasse décadas, ou séculos, longe de Kyl, quando por fim o revisse, o conheceria na mesma hora. A cicatriz em sua sobrancelha, o sorriso hesitante, as orelhas pequenas e perfeitas... Eu só queria abraçá-lo, mas minhas pernas tremiam tanto, que eu estava quase caindo.

- Therry... - ele esticou a mão para tocar meu rosto, mas sua mão foi desaparecendo. Ele todo estava sumindo, pouco a pouco deixando de existir.

- Kyl! - minha vista estava turva por causa das lágrimas, e vê-lo sumindo era desesperador.

- Você é fraca. - ele acusou - Não chore. Fraca. Você é fraca.

- Eu... Eu... - apertei o maxilar.

O rosto de Kyl à penumbra era quase invisível.

- Não pense que você vai conseguir salvar o mundo. Está sendo estúpida. Você sempre...

E então ele sumiu. Corri para abraçá-lo no instante que ele deixou de existir, e desmontei no chão, apoiada sobre as mãos e os joelhos. Minhas lágrimas pingavam no assoalho, e minhas mãos estavam trêmulas.

- Kyl - sussurrei - eu sinto muito.

Nesse instante, eu acordei. Me sentei na cama, percebendo que estava toda suada. Chutei as cobertas e me encolhi, segurando as pernas junto ao peito. Eu queria chorar, mas as lágrimas não vieram. Era extremamente conveniente que todas as camas dessa ala hospitalar fossem cercadas por cortinas - eu não queria que ninguém me visse tão devastada.

- Kyl - murmurei - você está certo. Eu sei que foi apenas um sonho, mas... eu acho que você está certo. Eu sou fraca. Eu sou inútil...

Já deveria ser manhã, pois a luz que atravessava a cortina era bastante intensa. Eu queria me levantar, mas ainda não tinha forças. Me deixei cair de volta ao travesseiro e fechei os olhos.

- Até onde vou lutar? - me perguntei - Até que não possa mais aguentar? Eu... eu preciso encontrar Kyl...

Mal eu acabara de falar, e a cortina da minha cama foi empurrada para os lados. A claridade que atravessou minhas pálpebras em um tom vermelho vivo, me fez apertar ainda mais os olhos.

- Falando sozinha? - indagou uma voz feminina.

Abri os olhos, pestanejando, e encontrei, parada a me fitar, a garota morena cujo nome era Kolie. Dessa vez, ela estava sem sua cota de malha, vestindo apenas uma camisa masculina branca e preta até as coxas. Seu cabelo castanho estava dividido em marias-chiquinhas baixas, com alguns fios soltos, e ela, naturalmente, não sorria.

- O quanto você ouviu? - me forcei a sentar na cama, ainda com os olhos apertados graças à luz do dia.

- Algo sobre você precisar encontrar um tal de Kyl - ela deu de ombros - Quem é Kyl? Seu namorado?

- Meu irmão - corrigi - e é muito feio ficar ouvindo a conversa dos outros por trás das cortinas.

Os lábios de Kolie se moveram para formar algo próximo a um sorriso, mas que ainda estava longe de ser um.

- É feio também ficar dormindo até a hora do almoço - alfinetou - Seus amigos estão na lanchonete com Ryko e Perio, numa hora dessas. Eu sei que estamos em um hospital, mas você também não precisava entrar em coma.

Passei a mão pelo cabelo, sonolenta.

- Ok, foi mal - me desculpei - Eu estava exausta.

Kolie me olhou com um ar acusatório.

- Luto em batalhas por territórios desde os treze anos. Guerra após guerra. Feridas. Sangue. Exaustidão. Mas nunca, em toda a minha vida, reclamei disso ou fiquei dormindo além da conta.

Suspirei, baixando o olhar para minhas mãos entrelaçadas.

- Tem uma diferença - falei - Você é forte. Eu não.

- O quê? - Kolie arqueou as sobrancelhas - Se você é uma fracote, então o que faz no meio dos integrantes da profecia? Que absurdo! Inaceitável! Dill já foi mais seletivo, antigamente.

Ergui os olhos para ela, e vi que estava séria.

- Quando eu era pequena, eu achava que eu era muito forte. - contei - Eu fazia tudo para proteger o Kyl, meu irmão mais novo, porque eu tinha mais poderes que ele. Mas quando eu acordei em uma prisão, sem poder falar, e logo conheci Finnie, Hanna e Phill, percebi que era muito inferior a eles. Eu tinha medo do que poderia acontecer. Queria protegê-los, mas tinha medo. Por isso sou fraca.

- Quanta tolice - Kolie se sentou na beirada da cama - Força não é tomar a frente da situação em todos os casos. Força vai além disso. Não é nunca sentir medo, e sim sentir medo mas fazer o possível para enfrentá-lo. Força não é precisamente força física, e sim aquela interna, aquela emocional. A que vem de um coração para outro coração. É amar alguém e estar do lado dessa pessoa, pronta para matar por ela, ou morrer.

Enquanto Kolie falava, sem me encarar diretamente, eu me perguntava se tudo o que ela dizia era para mim ou para si própria. Me esforcei para esquecer o pensamento - eu não conhecia Kolie Schenato, em nenhum aspecto, mas sabia que ela era uma guerreira. Sabia que se ela era séria assim, era por alguma razão realmente significativa. E, por isso, eu duvidava que ela fosse como eu; a força que ela tinha ia muito além do emocional. Vê-la balbuciar sobre força me encorajava a apagar esse bloqueio em meu cérebro e ser forte. Custe o que custar.

- Kolie - Eu disse. - Obrigada.

Então, pela primeira vez, eu a vi sorrir de verdade.

Missão Secreta - Parte 2Onde histórias criam vida. Descubra agora