Você não é fraca (Stiven)

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FOI UM SOLUÇO QUE ME ACORDOU.

Para ser franco, eu sequer me lembrava da hora em que adormecera; eu simplesmente havia me deitado naquele chão poeirento da sala de Vamb e, de repente, caíra no sono. Eu estava realmente exausto. Achava que nada me acordaria, nem mesmo se um dragão incendiasse a casa. Me surpreendeu quando um simples soluço me arrancou de meus sonhos.

Sentei-me de imediato, com os braços cruzados sobre o peito para me proteger do frio castigador. Olhei ao redor, sonolento, avistando os muitos corpos estirados no chão perto de mim. Por um instante, eu não sabia nem meu próprio nome, ou onde eu estava; sentia que podia desmaiar de novo a qualquer instante.

Foi quando avistei uma silhueta debruçada sobre a mesa, e percebi que era dali que partiam os soluços e engasgos contantes. Não era difícil deduzir que se tratava de uma garota, mas, até então, eu não fazia a menor ideia de quem era.

Me levantei rápido, e me aproximei. Estava claro que ela estava chorando. E mesmo que eu fosse um medroso e rabugento, ver meninas chorarem partiam meu coração.

Dois passos depois, descobri que se tratava de Rethes. Metade do seu rosto estava encoberto pelos cabelos brancos e ondulados, no entanto era possível notar as lágrimas que pingavam sobre um papel, onde ela rabiscava alguma coisa.

- Desculpa. - ela sussurrava - Desculpa. Se eu não te vir mais, se eu não puder mais te tocar... só me desculpa.

Minha boca começou a se abrir enquanto minhas sobrancelhas se erguiam. Caminhei para mais perto e sentei ao seu lado. Rethes deu um pulo, olhando assustada para mim. Seus olhos rosados arregalados submersos em tristeza, suas bochechas e nariz vermelhos de chorar. Eu achei que ela ia me mandar ir embora, ou que ela mesma iria, mas tudo o que ela fez foi uma careta e tornou a chorar sem parar.

- Kyl - disse ela com a voz abafada - qual é a cor de Gost? Eu... eu não me lembro! Por favor... eu não quero lavar a louça dessa vez...

Sem saber quem era Kyl, ou sobre o que ela estava falando, optei por conservar o silêncio. Com certeza todas aquelas lágrimas não eram apenas por ela ter se esquecido de uma cor. Iam muito além disso. Esgueirei-me para ver o que ela escrevia. De um lado, as Terras. Do outro, suas respectivas cores. O tão popular Jogo das Cores que Vamb usara em sua pesquisa. Pelo que eu podia ver, ela sabia todas as cores, exceto Gost; tudo estava perfeitamente anotado, como se ela tivesse feito aquilo sua vida toda.

- Cinza. - eu disse - A cor de Gost é cinza, como a poeira dos fantasmas, e como o céu metálico.

Ela anotou rapidamente e soltou o lápis sobre o papel respingado de lágrimas. Respirou fundo duas vezes de olhos fechados, até relaxar. Quando estava mais calma, ela tornou a abrir os olhos, e a voltá-los para mim.

- Você acha que ele me perdoaria? - indagou, num fio de voz - Depois de eu tê-lo deixado para trás? Depois de ter sido fraca durante todo esse tempo?

- Olha, minha filha, eu não tenho a menor ideia do que você está falando - encolhi os ombro - mas, seja lá quem for esse tal de Kyl, você não o deixou porque quis. Dill te forçou a isso. E sobre você ser fraca... garota, de onde é que você tirou essa ideia? Se eu bem me lembro, você era um Clor, o que só acontece com os mais resistentes e poderosos. Sem contar que é uma dominadora completa, um dom quase tão raro quanto Fogo e Gelo.

Ela arfou, desviando os olhos para sua folha de papel.

- Eu sei, mas...

- Mas nada. - interrompi, cobrindo o papel com a minha mão imediatamente - Olhe para mim.

Ainda que relutante, ela ergueu seu olhar cansado e cheio de dor. Vê-la nesse estado me fez lembrar de Jolie... das tantas vezes em que eu a vira chorando em seu quarto, ao lado do berço de um filho ao qual ela sequer teve o prazer de conhecer.

- Escute o que eu vou te dizer. - prossegui, olhando profundamente em seus olhos - Eu te conheço. Eu sei quem você é. Você é aquela mesma menina, cujo olhar diz o que mil palavras não conseguiriam. Rethes, em nenhum momento, em nenhuma circunstância, em nenhuma hipótese, pense que você é fraca ou incapaz, porque eu sei que você não é!

Ela se virou totalmente na minha direção e chegou o rosto próximo ao meu.

- Eu sei o que pensa sobre mim - ela sussurrou - Que talvez eu seja Therry, a indestrutível. Rethes, a corajosa. E talvez eu seja mesmo isso tudo, por fora. Só que, uma vez, uma guerreira me disse que força vai muito além do físico. Que está ligado ao quão preparado emocionalmente você está. E eu, Stiven... - ela engoliu em seco - eu perdi a capacidade de me preparar quando fui separada da única pessoa a quem eu amei. Kyl Rebby, o meu irmão.

Ficamos nos encarando por uns segundos, ambos engolidos pela penumbra e tristeza. A única figura que eu tinha de um irmão, era o perfeitinho Lowos Garden. Era ele quem sempre me repreendia, quem me aconselhava, e quem discutia comigo por coisas estúpidas. Se eu fosse brigar com alguém por um pedaço de bolo, com certeza seria com Lowos. Mesmo se eu não estivesse com fome, provocar o irmão mais velho era uma sensação única. E, agora eu percebia, ele me fazia uma falta enorme.

- Kyl era dois anos mais novo. - disse, amargamente - Nossos pais nos abandonaram quando éramos pequenos, para morrermos. Fomos salvos por um pé de caúme no nosso jardim. - ela pegou o papel no qual escrevia e segurou-o com suas mãos trêmulas - Meu irmão e eu sempre jogávamos o Jogo das Cores. Ele quase sempre vencia e eu... eu tinha que lavar a louça. - ela deu uma risadinha sem humor - Quando lembro de Kyl, me pergunto se fui justa com ele. Se eu fui a irmã mais velha que ele desejou. Eu sei que talvez ele nem esteja vivo, morando lá sozinho, mas eu sinto tanto, tanto a falta dele! - mais lágrimas escorreram por suas bochechas.

A partir daí, cada tentativa, por menor que fosse, que ela fazia de falar resultava em um acesso de engasgos e soluços. Eu estava diante de uma pessoa que poderia desmontar, e eu não sabia mais o que dizer. Então simplesmente a abracei, e deixei-a se render ao seu pranto, seu pesar. Eu queria que ela soubesse que, aconteça o acontecer, Rethes e eu éramos amigos. E eu nunca deixava um amigo sozinho.

Missão Secreta - Parte 2Onde histórias criam vida. Descubra agora