— ELA NÃO VAI MORRER, não é? – perguntei, pela milésima vez, observando o corpo da garota que repousava suavemente, como se estivesse em um doce sonho. Isso despertou a atenção de Samier, que voltou seus grandes e cintilantes olhos azuis para mim e ficou contemplando-me sob a luz crua da lua que atravessava a porta entreaberta.
— Você não vai parar de me perguntar isso? – ela disse. Mas não com um tom arrogante, de quem me queria longe; era um tom arrastado, cansado e quase inseguro que me surpreendeu – Eu queria mesmo ter uma resposta... os dias vêm e se vão, e ela continua aqui, desse jeito. Eu só queria... que ela ficasse bem.
Samier desceu o olhar para a garota e reprimiu um suspiro. Era noite, e talvez a mais longa noite da minha vida, já que pareciam fazer horas que eu estava ali, velando o sono daquela menina. Por ser um hipnotizador, eu não tinha a real necessidade de dormir, mas gostava de fazê-lo para esquecer todas as preocupações que rondavam minha mente. Era como fechar os olhos para a realidade. E eu sabia que Samier pensava da mesma forma que eu.
Todos dormiram rápido, exceto por nós dois, os hipnotizadores. Eu sabia que ela era como eu, podia sentir isso. Então nos limitamos a olhar para aquele rosto tão jovem, talvez mais jovem que qualquer um de nós, que parecia tão sereno e inabalável. Um rosto delicado, cabelos loiros espalhados pelo chão, os olhos movendo-se lentamente sob as pálpebras, de um lado para o outro. Ela era linda. Tão linda quanto uma escultura. E era por isso que eu não podia desviar os olhos dela nem por um instante.
— Como? – soltei aleatoriamente.
Samier mais uma vez me olhou, com sua expressão cansada mas com um quê de aborrecimento.
— Do que você está falando, idiota?
Pigarreiei, sem jeito.
— Eu queria saber como... ela veio parar aqui...
Samier rolou os olhos, passando os dedos entre os fios loiros da garota, que pareciam cinzentos sob a pouca luz. Era como ver uma mãe com sua filha.
— Ela parecia estar fugindo – contou Samier, observando-a – como se estivesse sendo perseguida por alguma coisa. Aí ela bateu à minha porta, mas acabou sendo atacada pelos lobos antes que eu abrisse. Talvez seja minha culpa mesmo...
Guardei silêncio por algum tempo, repassando suas palavras na minha mente. Culpa. Eu sempre imaginara culpa e inocência como algo relativo, já que poderia ser analisado em várias perspectivas. Você poderia ser inocente e ainda assim sentir-se culpado; pessoas poderiam te acusar de culpado, quando você na verdade é inocente. No fundo, somos sempre culpados de alguma coisa, e inocentes por não reconhecer isso. Eu aprendera aquilo com meu pai.
— Talvez a culpa seja sua mesmo – balbuciei – mas isso não importa. Você está aqui agora, dando tudo de si para mantê-la viva.
Ela forçou uma risada.
— Cala a boca, idiota. – disse, e então desviou o olhar para algum ponto acima da minha cabeça – Alguém levantou. Vai lá chamar esse demente para dentro antes que os lobos palitem os dentes com o esqueleto dele.
Mesmo que quisesse continuar ali, eu sabia que Samier estava certa. Se alguém era louco o suficiente para sair, o mínimo que eu podia fazer seria convencê-lo a voltar, antes que fosse atacado. Respirei fundo, dirigindo-me à porta.
Uma brisa gélida me atingiu, me fazendo estremecer até as pontas dos dedos. Estava ventando; era mesmo reconfortador o som da folhagem agitando-se conforme o vento se intensificava, trazendo um aroma delicioso que eu não saberia descrever com palavras. Me transmitia paz; toda aquela paz que eu buscava incessantemente, naquele momento pareceu mais próxima que nunca. Respirei fundo de novo, saboreando a brisa, e então avistei a pessoa que havia saído.
Estava escuro, mas não tanto; em Liberty nunca ficava realmente escuro, já que a lua estava sempre cheia e brilhante. Isso ajudou-me a localizar aquela bela moça, parada de costas, em frente a uma árvore. Seus cabelos, negros como a noite, balançavam-se levemente para todas as direções, assim como sua camisa que era grande demais.
— Emire? – chamei, aproximando-me, cauteloso.
— Acha que ela está bem? – ela disparou na mesma hora, me deixando confuso. Parei e continuei a estudá-la, enquanto a mesma permanecia de costas – A Sizy, quero dizer. Minha irmã.
Abri a boca para responder, mas não encontrei palavras, então apenas tranquei o maxilar.
— Sizy é uma menina boba. – ela riu, finalmente virando-se para mim. Seus olhos castanhos estavam com aquele brilho maluco de sempre, e o sorriso de dentes tortos não havia abandonado-a – Um bolo de caúme para você, Sizy. Não fale com estranhos, Sizy. Não suba na árvore, Sizy. - Ela deu uma gargalhada gostosa de se ouvir, que arrancou um risinho meu - Sabe o que ela fez?
Emire deu uma corridinha até onde eu estava, cobrindo a distância entre nós. Não. Não era o mesmo brilho louco. Ela parecia um tantinho pior.
— Ela subiu na árvore e ficou gritando lá em cima: Emire! Emire! – ela riu novamente – Eu queria empurrar ela! É uma pena você não ter conhecido a minha irmã, espero que a conheça algum dia, Lekso!
Franzi o cenho imediatamente. Lekso? Quem era Lekso? E por que eu estava sendo confundido com ele? Tentei ignorar todas as perguntas que tomaram conta da minha mente naquele instante e segurei os ombros de Emire, fazendo-a prestar atenção em mim.
— Escuta. Está tarde. Você precisa dormir.
Ela sugou uma grande quantidade de ar, inflando as bochechas e fazendo biquinho, como uma criança. Ah, Emire... eu só queria que você ficasse bem. Psicologicamente bem. E não era como se eu não gostasse de todo aquele jeitinho infantil e alucinado dela, mas eu só... eu me preocupava demais.
— Eu não quero entrar! – disse ela, cruzando os braços e sustentando o bico - Eles ficam sussurrando, e eu não gosto do que dizem. Eu quero uma flor.
— Você...? – dei um longo suspiro. – Emire, os lobos estão por aqui, daqui a pouco eu e você vamos virar o jantar deles.
Ela deu de ombros, desvencilhando-se das minhas mãos. Suas bochechas estavam ainda mais vermelhinhas, assim como seu nariz. Eu acompanhara as doideiras de Emire desde que a conhecera, e por isso podia afirmar que naquela madrugada ela estava especialmente pirada. Havia regredido; era uma criança em um corpo adulto. E eu não sabia lidar com crianças.
Emire se virou e correu de volta para a árvore.
— Eu queria escrever meu nome, mas esqueci de como se escreve... – ela riu de si mesma - tinha um "R"? Ah! Eu não sei. Lekso, escreve aqui para mim.
Caminhei devagar até ela, contendo uma série de suspiros. Parei bem ao seu lado, frente ao tronco da árvore, onde podia ver alguns arranhões marcando a madeira e... sangue.
— E-Emire... o que você...?
Arregalei os olhos para ela, que fingiu não perceber.
— Queria escrever o nome da Sizy também! Ela vai gostar, não vai?
Então ela apoiou a mão no tronco e eu gelei com o que vi. Seus dedos estavam completamente ensanguentados, as unhas destruídas de onde ainda brotava sangue. Como eu não tinha percebido? Tomei suas mãos nas minhas, que tremiam descontroladas, e fiquei olhando-a com toda a piedade que eu tinha.
— Emire – falei, tentando colocar firmeza na voz, mas falhando miseravelmente.
Ela abriu um lindo sorriso.
— Oi? Fala. Vai escrever pra mim? Hm?
— V-você precisa entrar agora. Precisa dormir.
— Mas os sussurros! – ela protestou, batendo o pé no chão – Eles me dão medo!
— Não precisa ficar com medo, OK? – engoli em seco – Eu vou ficar do seu lado e esperar você...
Eu queria ter concluído a frase, porém, nesse mesmo instante, ouviu-se um baque e Emire desabou, me dando pouco tempo para segurá-la antes que batesse direto no chão.
— Emire! – gritei, sentindo os olhos pinicarem – Em...
E então, nada. Foi uma dor excruciante e, em seguida, a escuridão. Alguém havia me acertado...
Pensei que tinha morrido.
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Missão Secreta - Parte 2
FantasyEles já enfrentaram coisas que nem imaginariam; estiveram várias vezes entre a vida e a morte; conheceram novos aliados e amigos; e passaram por muitas Terras atrás de uma simples profecia. Agora é tudo ou nada. Com suas memórias restituídas, e, nou...