26 - Fardo

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– Mas o que aconteceu com você?! – Itsuki pergunta, visivelmente perturbado.

– ... – Não falo nada, apenas grunho.

Nunca o vi se alterar tanto em todas às vezes que eu o visitei. O que tem demais, quero dizer? Eu devo parecer mais deprimido que o normal, mas nada que justificasse sua surpresa.

O monge não fala nada por alguns instantes, até virar-se e começar a andar até o pátio onde normalmente medito. Eu o sigo, naturalmente. Quando chegamos, fazemos como sempre: sento, me posiciono e ouço–o falar um pouco antes de me concentrar. Fecho os olhos.

– Deixe tudo vazar. – Itsuki começa. – Lembre-se das ondas. Do seu movimento rítmico, do som que fazem ao chocar-se contra as pedras. E ao mesmo tempo, lembre-se da serenidade do mar. Leve essa harmonia para dentro de você.

Ondas azuis, brancas, vindo ao meu encontro na beira da praia. Estou descalço e a água bate um pouco abaixo do joelho. Também sinto a brisa, leve, salgada mas refrescante. E o sol, o sol negro –

Negro?

Assim como o resto do céu, assim como o mar e suas ondas, assim como a areia. Tudo está sob o breu, mas isso é diferente da noite. Isso é escuridão completa, absoluta. E ao quebrar:

– Aahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh! – Um grito. Um rosto. Uma máscara. Um ferimento. E sangue, muito sangue. E a cada onda que quebra, o espetáculo de horror se repete.

O rosto contorcido de um bandido, com um corte profundo no peito,

O rosto congelado em terror de um soldado, empalado.

O rosto neutro do meu pai, com uma flecha encravada no meio da testa.

O rosto emoldurado por lágrimas de Beatriz, cuja barriga jorrava sangue.

O rosto sufocado de Tysen, com a garganta aberta grotescamente.

O meu próprio rosto, encharcado de sangue, possuído por um sorriso sádico.

O meu horror grita pela minha boca e me ensurdece.

Itsuki está na minha frente, me encarando. Uma gama de emoções ocupa sua face, mas a preocupação se destaca dentre elas. Ele levanta e me estende a mão. Eu a uso como apoio para ficar de pé também, mas com isso também percebo o quanto estou tremendo. O monge começa a me levar para outro lugar, e ao passar pelos corredores de pedra, percebo que é para fora. Não para alguma entrada ou saída do templo, mas sim uma seção da praia "pertencente" ao monastério. Logo a brisa do mar me afaga, seu cheiro de sal e areia preenchendo meu nariz. Não deixo de olhar para o céu, mas ele está nublado. Pode chover a qualquer momento.

– Tire suas botas. – Itsuki manda antes de passar na areia. Faço como disse e avançamos mais. Em determinada altura da caminhada, ele estende um enorme tecido sobre o chão, o qual nem havia visto ele carregar. – Deite-se e feche os olhos. – Ele fica em silêncio pelo que parece ser um minuto.

– Faon. – Recomeça o monge. – Eu consigo ver este flagelo dentro de você, mas ele é diferente de tudo que eu já vi em toda a minha vida. Eu não sei o que aconteceu com você durante o ataque, mas deve ter sido... Horrível. Tentarei lhe dar um pouco de paz de espírito, mas não posso garantir nada. Perdoe-me. – Penso numa resposta, mas não falo nada. Mal tenho energia para abrir a boca, se não para gritar ou chorar.

Ele começa, e sinto uma sensação familiar. Boa e familiar.

Naquele dia em que fui até o subsolo com Tysen revisar sobre magia, e ele me mostrou a suposta diferença entre o efeito de um feitiço normal e uma ilusão. Ilusões tinham um efeito muito maior, mas não eram permanentes nem verdadeiras. Bem, nada precisa ser verdadeiro se surtir um efeito, não é? Não me importa a diferença entre um fogo falso e um fogo verdadeiro se ambos queimam. De toda forma, é aquele calor agradável, aquele otimismo palpável, aquela onda de calma que sinto agora. Tento relaxar e permitir que o feitiço espalhe esse efeito por todo o meu ser. Eu preciso disso. Não posso deixar a escuridão tomar conta. Acalme-se. Respire.

Canção de Ouroboros: A inocência do DescendenteOnde histórias criam vida. Descubra agora