http://tinyurl.com/ouroboros1-20
O sono está atrasado.
Eu posso estar cansado e de barriga cheia, mas minha mente está ocupada demais.
Beatriz não cantou mais nada depois de Olhos Dourados, e não demorou até que todos fossem para seus quartos. Já deve ter passado uma hora desde que eu me deitei, e nada. Se bem que não ajuda o fato de que eu estou inconformado. Afinal, o que eu sei fazer além de lutar e enfeitiçar?
Beatriz canta e está aprendendo algum instrumento, não lembro qual; Tysen toca alaúde, Shin caminha e pensa a respeito das coisas. Apenas Mia não faz nada. Ou talvez faça, não lembro dele ter falado algo a respeito. O jeito com que se porta e com o qual conversa é muito mais marcante do que as próprias palavras. É como se independente do que saísse pela sua boca, seu tom de voz e seu corpo dizia apenas: "Não, obrigado."
No caso dele realmente não saber nada, talvez pudéssemos tentar aprender algo juntos. Eu já havia tentado música e pintura. Talvez poemas? Bufo. Do que adianta ser tão bom com algo que, no fim, não passa de um instrumento de violência? Bem, dizem os livros que em Sacrevi mesmo o combate era considerado arte. E a magia? Poderia ela ser considerada arte?
Espere um pouco.
Poderia a magia criar arte? Poderia eu criar, por exemplo, música?
Tento lembrar do som, ou melhor, da série de sons que o alaúde reproduzia. Tento lembrar do ritmo, da velocidade, dos dedos percorrendo e pressionando os fios, e principalmente da vibração das cordas. Sinto a própria energia vibrar dentro de mim, até que começa a sair e fluir pelos meus braços, uma suave luz azul iluminando o quarto escuro.
Mas nada acontece.
No entanto, não desisto. Talvez esteja muito baixo. Talvez... Reflito um pouco mais em minuciosos detalhes, e reúno mais energia azul apesar do peso do preço sobre a minha mente e o meu corpo, e movo a minha mão numa linha reta.
E ouço o alaúde tocar.
– Olá! – O quarto fica escuro momentaneamente com a interrupção do feitiço, antes de ser iluminado por outra fonte: um orbe de luz. E um ser encapuzado, envolto em tecido roxo, no parapeito da janela. Mas o que confirma minha suspeita são seus olhos: vermelhos, vermelhos como fogo, vermelhos como sangue.
– Você me atrapalhou, Kirian.
– É mesmo? Bem, existem questões maiores do que o que quer que estivesse fazendo agora. Venha comigo.
– Agora?
– É, agora. Ande. Confie em mim. – Levanto da cama e ponho a camisa, o sobretudo vermelho e as botas.
– Espere um pouco. Como você me achou?
– Quando eu estava passando por perto eu senti o seu cheiro na brisa. Daí não foi difícil demais encontrá-lo.
– Cheiro?
– É, eu te explico no caminho. Venha. Belo sobretudo, por sinal. – E Kirian pula. Pelo menos dessa vez é o segundo andar apenas, e não o terceiro. Menos mal. Hesito muito menos do que antes, e mal sinto necessidade de suavizar a minha queda com magia. Agradeço Kojiro mentalmente pela sua primeira aula, pequena e pessoal. Decido que um orbe de luz não é o suficiente e faço outro, na palma de minha mão. Mal saímos do prédio e sinto um forte cheiro de queimado. Quando chegamos ao limite da mata fechada, há uma brecha, exata e perfeita. Um caminho marcado por cinzas, como se a própria Sombra tivesse caminhado ali. O pensamento me arrepia.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Canção de Ouroboros: A inocência do Descendente
FantasiViver é doloroso, e a música não mente. Isso é verdade independente de quem você é, e ao mesmo tempo, especialmente de quem você é. Faon aprendeu muito pouco disso com treze anos, como se é de se esperar. Após algumas excruciantes guinadas na sua vi...