20 - Apenas uma sombra

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O sono está atrasado.

Eu posso estar cansado e de barriga cheia, mas minha mente está ocupada demais.

Beatriz não cantou mais nada depois de Olhos Dourados, e não demorou até que todos fossem para seus quartos. Já deve ter passado uma hora desde que eu me deitei, e nada. Se bem que não ajuda o fato de que eu estou inconformado. Afinal, o que eu sei fazer além de lutar e enfeitiçar?

Beatriz canta e está aprendendo algum instrumento, não lembro qual; Tysen toca alaúde, Shin caminha e pensa a respeito das coisas. Apenas Mia não faz nada. Ou talvez faça, não lembro dele ter falado algo a respeito. O jeito com que se porta e com o qual conversa é muito mais marcante do que as próprias palavras. É como se independente do que saísse pela sua boca, seu tom de voz e seu corpo dizia apenas: "Não, obrigado."

No caso dele realmente não saber nada, talvez pudéssemos tentar aprender algo juntos. Eu já havia tentado música e pintura. Talvez poemas? Bufo. Do que adianta ser tão bom com algo que, no fim, não passa de um instrumento de violência? Bem, dizem os livros que em Sacrevi mesmo o combate era considerado arte. E a magia? Poderia ela ser considerada arte?

Espere um pouco.

Poderia a magia criar arte? Poderia eu criar, por exemplo, música?

Tento lembrar do som, ou melhor, da série de sons que o alaúde reproduzia. Tento lembrar do ritmo, da velocidade, dos dedos percorrendo e pressionando os fios, e principalmente da vibração das cordas. Sinto a própria energia vibrar dentro de mim, até que começa a sair e fluir pelos meus braços, uma suave luz azul iluminando o quarto escuro.

Mas nada acontece.

No entanto, não desisto. Talvez esteja muito baixo. Talvez... Reflito um pouco mais em minuciosos detalhes, e reúno mais energia azul apesar do peso do preço sobre a minha mente e o meu corpo, e movo a minha mão numa linha reta.

E ouço o alaúde tocar.

– Olá! – O quarto fica escuro momentaneamente com a interrupção do feitiço, antes de ser iluminado por outra fonte: um orbe de luz. E um ser encapuzado, envolto em tecido roxo, no parapeito da janela. Mas o que confirma minha suspeita são seus olhos: vermelhos, vermelhos como fogo, vermelhos como sangue.

– Você me atrapalhou, Kirian.

– É mesmo? Bem, existem questões maiores do que o que quer que estivesse fazendo agora. Venha comigo.

– Agora?

– É, agora. Ande. Confie em mim. – Levanto da cama e ponho a camisa, o sobretudo vermelho e as botas.

– Espere um pouco. Como você me achou?

– Quando eu estava passando por perto eu senti o seu cheiro na brisa. Daí não foi difícil demais encontrá-lo.

– Cheiro?

– É, eu te explico no caminho. Venha. Belo sobretudo, por sinal. – E Kirian pula. Pelo menos dessa vez é o segundo andar apenas, e não o terceiro. Menos mal. Hesito muito menos do que antes, e mal sinto necessidade de suavizar a minha queda com magia. Agradeço Kojiro mentalmente pela sua primeira aula, pequena e pessoal. Decido que um orbe de luz não é o suficiente e faço outro, na palma de minha mão. Mal saímos do prédio e sinto um forte cheiro de queimado. Quando chegamos ao limite da mata fechada, há uma brecha, exata e perfeita. Um caminho marcado por cinzas, como se a própria Sombra tivesse caminhado ali. O pensamento me arrepia.

Canção de Ouroboros: A inocência do DescendenteOnde histórias criam vida. Descubra agora