Capítulo 7

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Música sugerida para leitura:  Radiohead - High And Dry

O sol já estava se pondo quando Lara desceu as escadas e foi me encontrar na sala da casa. Usava um longo vestido branco com pequenos brilhantes ao longo da cauda e um decote avantajado. A volumosa barriga dava um charme especial a noiva mais linda que eu já vira.
– O que achou? – perguntou visivelmente tensa.
– Você está divina! – corri e lhe dei um abraço gentil enquanto admirava seus cabelos loiros devidamente trançados e a bela maquiagem rosada que emoldurava seu rosto.
– Espero que Bruno goste, detestaria desapontá-lo logo hoje.
– Deixa de besteira, você está incrível. E a minha afilhada? Está tudo bem com ela?
– Com a madrinha ausente. Fora isso tudo bem – disse com um sorriso sarcástico.
– Me desculpa por esses sumiços e por não dar notícias, as coisas tem sido complicadas...
– Eu não faço ideia no que você está metida e vou respeitar se não quiser contar, só lembre-se de uma coisa: eu sempre vou estar aqui para te ajudar.
Fui envolvida por um meio abraço gentil e materno. Era inacreditável como a maternidade tinha mudado Lara, como tinha feito dela mais mulher e mais responsável. Me sentia uma adolescente tola diante daquela paz e tranquilidade que ela emanava com o olhar.
– Bem, então vamos. Daqui a pouco o Bruno pensa que desisti do casamento e foge da igreja.
– Definitivamente é melhor irmos logo – sorrimos.
   
A cerimônia foi iniciada seguindo todas as tradições, entrei de braços dados com um primo distante de Lara e lancei um tchauzinho na direção dos pais dela. A igreja estava decorada com lindas flores nos tons de rosa e vermelho, inúmeros cristais e fitas grossas. Uma coisa de conto de fadas, o que era bem a cara da Lara. Assisti sua entrada e seu encontro com Bruno, obviamente não consegui segurar as lágrimas enquanto os votos eram trocados e eu me dava conta de quanto eu estava feliz por aquela união. Os meus melhores amigos juntos e radiantes.
O final da cerimônia chegou depressa e logo me vi sozinha no altar, meio perdida e sem vontade de dar adeus aquele lugar. Sabia que precisava ir até Olimpo resolver os assuntos com Celena, sabia que talvez precisasse reencontrar Sebastian e Zeus, sabia que não poderia adiar essas coisas. Me perdi olhando as flores e os cristais sonhando com um casamento que eu deveria ter, as flores poderiam ser brancas, o meu vestido poderia ser longo e o noivo... o noivo talvez me largasse no altar.
– Pronta para subir ao altar?
– Falta a peça principal: o noivo.
– Eu faço esse sacrifício – disse Euro me lançando um sorriso sedutor. Ele vestia uma calça social preta e uma blusa de gola alta da mesma cor. Seus cachos estavam revoltos e seu olhar negro como sempre.
            – Já temos que ir né?
            – Sim, não acho que podemos esperar uma noite. Hades entrou em contato comigo pra dizer que ele também está no Olimpo a nossa espera. Esse vestido foi uma escolha premeditada? Você está uma deusa.
            – Obrigado. Eu só preciso ir até o salão dos fundos e me despedir dos noivos. Tudo bem?
            – Claro, minha menina, te espero no estacionamento. Não quero que me vejam por aí, apagar memórias dá certo trabalho.
        
            Foi fácil encontrá-los no grande salão da igreja. Bruno já tinha tirado o terno e vestia apenas a camisa social branca. Lara também já tinha descido do salto, com aquela barriga deveria ser bem complicado mesmo. Assim que me avistaram os dois seguiram até o portal de entrada para me encontrar. Fui envolvida por um abraço duplo e aproveitei para alisar a volumosa barriga da noiva.
            – Obrigado por aparecer amiga e não deixe de mandar notícias, por favor.
            – Isso mesmo Leni, temos uma grávida aqui que vai surtar se a madrinha da nossa filha não aparecer na hora certa.
            – Obrigado, meus amores, e eu prometo que vou estar aqui para o nascimento da minha afilhada, pode ficar tranquila amiga. Agora eu preciso ir... resolver meus problemas...
            – Boa viagem e se cuida minha amiga, qualquer coisa é só ligar.
            – Obrigado e muitas, muitas felicidades pra vocês.
            Nos despedimos com mais um abraço gentil e assim que me virei comecei a agilizar os passos. Ao alcançar o estacionamento da igreja me deparei com uma ampla área mal iluminada, apenas banhada pela luz da lua. Consegui avistar Euro a alguns metros de distância e segui caminhando apressadamente em sua direção até ouvir um barulho estridente.
            – Cuidado menina!
            Após o grito de Euro consegui me abaixar e desviar do enorme animal com asas que vinha na direção do meu pescoço. Consegui me levantar a tempo de enxergar o animal atacando Euro na altura do ombro. Era um morcego enorme com asas de dois metros e uma cabeça gigante. O animal era realmente monstruoso.
            Mesmo com o pânico por ver aquele bicho enorme atacando Euro consegui encontrar uma barra de ferro jogada no meio do estacionamento, corri e consegui bater com força na cabeça do morcego. Assim que o animal tomou distância de Euro uma onda de choque me atingiu, a roupa preta estava banhada por um líquido espesso e denso, sua pele branca do pescoço estava lavada em sangue. Não tive tempo de fazer nada e meu corpo pareceu responder sozinho, segurei forte a barra de ferro e segui na direção do animal com todo ódio e rancor que eu pude reunir. E aí meu corpo foi munido por uma sensação de poder e fúria que só aumentava a cada golpe que eu dava no grande morcego.
            – Menina, pare! Ele já morreu.
            A voz de Euro me despertou como se eu tivesse acordado de um sono profundo. Minhas mãos e meu vestido estavam cobertos por um líquido preto asqueroso e eu sabia que aquele animal já era.
            – Eu preciso da sua ajuda, por favor. Largue essa barra e arraste esse bicho para aquele matagal. Em seguida me ajude a levantar e me coloque no carro.
            – Eu sei exatamente o que fazer.
            Minha voz saiu fria e grosseira. No fundo eu não sabia o que estava fazendo mas meu corpo segui com as atividades involuntariamente. Minha vontade era sentar no chão e chorar até todo aquele horror de sangue e luta sumirem da minha mente, mas meu corpo não precisava disso. Puxei o corpo inerte do animal até um canto isolado do estacionamento e agradeci por Euro ter me dado um isqueiro. Ascendi o fogo e sabia que em questão de segundos só restariam cinzas. Voltei até o carro e ajudei Euro a se sentar no banco da frente, colocando o sinto e lhe entregando lenços de papel para estancar a o grande corte no pescoço.
            Dei a partida no carro e sabia exatamente o destino, só não sabia o que encontraria lá. Um aperto no peito me fez perder o ar enquanto eu arrancava com o carro. De alguma estranha maneira eu pude pressentir o próximo ataque, meu coração deu um salto quando eu consegui de alguma forma me unir ao próximo Enviado. Pude por um breve instante enxergar através dos seus olhos e eu sabia exatamente aonde ele estava. Por sorte o Enviado parou ao pisar em uma grande poça e quando ele virou para baixo e viu seu reflexo eu prendi o ar.
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            Assim que apaguei os faróis e comecei a ajudar Euro a sair do carro senti uma presença forte e luminosa vindo em nossa direção.
            – O que houve? – a voz de Celena soou angustiada e pela primeira vez não me transmitiu segurança.
            – Um Enviado o atacou. Ele está perdendo muito sangue.
            – Vou levá-lo até o meu castelo, lá poderei cuidar das feridas. Celena, você cuida da Helen? – a voz de Hades era serena e vi quando passou gentilmente as mãos ao redor da cintura de Euro para lhe dar apoio.
            – Não preciso de cuidados. Eu preciso voltar até o Instituto o mais rápido possível.
            – O que? Você mesma pediu para sair de lá. O que está acontecendo Leni?
            – Celena, um Enviado está indo em direção ao Instituto e sinto que se eu não estiver por lá outras pessoas serão vítimas do ataque.
            – Você sentiu o Enviado? – seus olhos estavam assustadoramente arregalados e pude ver a expressão assustada de Hades enquanto segurava o corpo inerte de Euro.
            – Depois que vi o último Enviado atacando Euro meu corpo parece responder de outra forma, me sinto mais forte, os sentidos mais aguçados e minha mente está a mil por hora. Senti que o Enviado está se aproximando do Instituto e ele é... bem... enorme.
            – Isso é ainda mais assustador do que pensava. Você está se tornando uma semi-deusa.
            – Não pode ser, Celena, isso sempre foi um mito até mesmo no Olimpo. Nunca soube de um caso real desse tipo de transformação natural de uma simples humana – comentou Hades com uma expressão vazia.
            – Eu não faço ideia sobre o assunto só sei que preciso ir até o Instituto. Se puderem avisar ao Denis e alertá-lo do perigo eu já ficaria grata. Hades, por favor, cuida do Euro.
            – Pode ficar tranquila, ele está em ótimas mãos.
            E como se uma força física tivesse me levantado eu alcei voo. Pude ver a expressão de espanto de Celena e Hades, mas eu estava voando e isso era ainda mais bizarro. A noite estava linda, poucas nuvens no céu e uma grandiosa lua emoldurando o céu estrelado. Não me senti tensa como no voo com Denis, muito pelo contrário, me senti leve, suave como uma brisa da tarde. E embora minha consciência estivesse agitada e temerosa pelo próximo Enviado meu corpo estava tranquilo e relaxado. Olhar a paisagem de Belo Vale a noite era realmente divino, pude passar sobre o enorme salão da igreja e dar uma última olhada nos laços e flores que decoravam o lugar. No fundo eu sabia que aquilo era um adeus velado, no fundo meu corpo dizia que talvez eu nunca mais reencontrasse aquele sentimento de lar.
            Enquanto tomava distância da cidade a escuridão me envolveu cada vez mais e então o silêncio começou a me ajudar a reorganizar a minha mente caótica.
1 – Eu estava voando e, bem, isso não era lá muito normal;
2 – Eu tinha tido uma visão (?) do Enviado que estava seguindo para o Instituto, ou seja, eu consegui mapear o ataque do quinto Enviado;
3 – Meu corpo estava mais forte e resistente, anos de academia não me tornariam tão forte! A teoria de Celena sobre eu estar me tornando uma semi-deusa parecia ainda mais bizarra. Como isso seria possível? Eu acordo e pronto, estou linda, bela e semi-deusa? Isso era impossível. Alguma explicação real e científica deveria existir em alguma lugar... bem... talvez algum lugar longe de mim.
        
            Depois de algumas horas de voo finalmente avistei a grande área do Instituto Zeus Eleutério, a madrugada já tinha chegado e o aperto no meu peito dizia que o ataque estava próximo. Desci nos grandes portões e logo encontrei os olhares assustados de Denis, Leandro e um grupo de homens fortes também vestidos de preto. Era um grupo de 15 homens e fiquei me perguntando se Alexandra tinha se negado a ajudar o Instituto. Talvez ela só quisesse a minha morte.
            – Que bom que chegou. O aviso de Hades nos assustou um pouco. Sabe exatamente o que devemos procurar no perímetro do Instituto?
            – É um grande felino, cerca de três metros, é um animal bem grande. Acho que se nos dividirmos fica mais fácil, mas tenho certeza que ele vai procurar o meu cheiro e tentar me encontrar sozinha.
            – Senhorita, por que não te protegemos? Você deveria ficar segura dentro do prédio, podemos lutar contra esse animal e você não precisa se arriscar – disse um dos homens de preto visivelmente seguro de si.
            – Obrigado, mas prefiro ficar aqui fora e ajudar na busca. Acho que a divisão de vocês deve focar na vigília dos pontos de entrada para os prédios, não queremos um monstro de dois metros atacando algum inocente.
            – Ela está certa. Vamos rapazes, vamos definir uma estratégia. Leandro, fiquei com a senhorita Helen enquanto definimos algumas coisas.
            – Oi – eu disse ainda surpresa pela presença dele.
            – Nosso reencontro foi mais rápido do que eu imaginava – seu sorriso foi sincero. Leandro estava vestido totalmente de preto (obviamente), seus cabelos estavam arrepiados e devidamente contrariando as leis da física, seu olhar castanho resplandecia uma tensão e seu sorriso não conseguia emanar o sarcasmo tão habitual.
            – Por que está aqui fora? Você é só mais um aluno, não deveria te colocar nessa busca.
            – Eu pedi. Sem querer ouvi o aviso de Hades... acho que temos algum tipo de conexão... não sei explicar. Estava no meu quarto e ouvi seu chamado, quando entrei na sala de reuniões e contei que tinha escutado eles acharam que eu deveria fazer parte do plano.
            – Isso é loucura! Você ouviu por que é filho do cara, não por que tenha que colocar sua vida em jogo. Vou falar com Denis agora mesmo, não posso deixar você se arriscar dessa forma.
            – Não precisa, bem, no fundo eu sinto que devo ajudar de alguma forma estranha. Eu prometo que vou tomar cuidado, só me deixe ficar perto de você. Não vou morrer por causa de um gatinho né?
            Sua expressão era de uma ironia gritante mas no fundo eu senti a tensão e o medo, ele era só um garoto. Contudo, antes que eu pudesse contrariá-lo um rugido feroz atravessou a noite e meu corpo respondeu sozinho ao chamado.
            – Aonde você está indo? – Denis gritou tentando me alcançar e tirando Leandro da frente.
            – Matar esse gatinho. Não quero ninguém na minha frente, essa luta é minha.
            – Senhorita eu...
            – Denis, ninguém na minha frente! Cuide das portas e janelas do Instituto e tire o Leandro daqui.
            Minha voz soou autoritária e até mesmo arrogante, mas eu não estava no controle, meu corpo assumira uma postura de guerra, raiva e perigo. Acontecera da mesma forma com o Enviado anterior, meu corpo estava respondendo a um chamado de guerra. Como seu uma chave fosse capaz de mudar meu comportamento, meu eu-guerreira estava no comando e isso realmente era reconfortante.
            Vi Denis arrastando Leandro para longe enquanto eu caminhava cada vez mais para longe. Pude sentir a presença do Enviado mesmo antes de vê-lo e não senti medo ou pânico, eu sentia raiva e um ódio imensurável. O grande felino estava parado na minha frente, suas longas patas e garras afiadas contrastavam com o pêlo creme e a grande juba. Era um leão bizarramente gigante com uma expressão de 'vamos acabar logo com isso'. Nos encaramos enfaticamente enquanto os dois tentavam reconhecer o inimigo, o olhar do animal era mais cortante que suas garras e isso normalmente me faria correr de pânico. Ao invés disso apenas respirei fundo e alcancei a faca colocada estrategicamente na minha cintura, roubá-la de Euro tinha sido uma ideia bem genial da minha parte. 
            O grande leão tomou velocidade e já estava a alguns metros de mim quando atinge estrategicamente seu tórax. Um urro de dor cortou a noite e consegui tomar distância para enxergar o líquido preto que escorria pelo seu corpo cor de creme. Seus olhos faiscaram ódio e pude sentir que ele já estava preparado para outro ataque quando ouvi um grito.
            – Leandro, volte aqui!
            O animal também pareceu ouvir e em questão de milésimos de segundo se lançou no ar pulando por cima de mim disparando em direção a Leandro. O pânico finalmente atingiu meu estômago, aquele bicho mataria Leandro de uma maneira bem rápida. Então agi por impulso e lancei a faca na direção do grande animal, ficando desarmada e totalmente vulnerável. Por sorte a faca alcançou a pata traseira do leão fazendo-o cair antes de se aproximar de Leandro.
            – Alexandra, tira esse maluco daqui. Você está doido? Some da minha frente, agora.
            A ruiva (que tinha surgido do nada) felizmente acenou com a cabeça e seguiu puxando Leandro para longe e, provavelmente, estava lhe dando sermões infinitos. O grande leão conseguiu se levantar mas não rápido o suficiente. Corri para pegar a faça novamente e mirei no meio do seu corpo. Recebi um último olhar que parecia conter sarcasmo e ironia, o animal parecia gostar daquilo de uma forma bem doentia.
            Depois de mais alguns golpes me certifiquei de tacar fogo no grandioso corpo. Eu estava com um vestido formal vermelho, maquiada e completamente suja pela gosma negra expelida pelos Enviados. Meu coque estava totalmente desgrenhado e eu daria qualquer coisa por uma ducha. Deus, eu realmente precisava de uma noite de sono tranquila. Dois Enviados em um dia. Isso estava virando um reality show de sobrevivência.
            – Você está bem? – a voz de Alexandra era pesada e cansada. Usava uma calça preta justa e uma camiseta preta, as botas de cano alto lhe deixavam ainda mais elegante. O cabelo vermelho estava devidamente arrumado em um longo rabo-de-cavalo e sua expressão estava mais fria que o de costume.
            – Totalmente. Obrigado por cuidar do Leandro, não sei o que deu naquele garoto. Ele poderia ter morrido.
            – Ele me deu uma explicação tosca dizendo que queria te proteger. Homens são realmente uns idiotas.
            – Ele está no dormitório? Não sei se vou poder me despedir.
            – Ele foi medicado, acabou torcendo o pé na correria. Está na enfermaria, se quiser vê-lo fique a vontade.
            – Não, vou precisar seguir e encontra Hades. Apenas diga ao Leandro que volto assim que... assim que as coisas se resolverem. Faltam apenas três Enviados então acho que isso significa que resta pouco tempo.
            – Darei o recado.
            – Alexandra, obrigado por cuidar do Leandro. Não me perdoaria se aquele bicho tivesse feito algo com ele.
            – É minha obrigação cuidar das crianças desse lugar. Agora vá, você precisa pegar uma das carruagens e...
            Antes que ela terminasse levantei voo trazendo uma expressão de espanto e horror ao seu rosto sempre indiferente. Lancei um sorriso presunçoso e aumentei a velocidade. Não é toda hora que uma pessoa começa a voar feito um pássaro.

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