Capítulo 8

225 45 13
                                    

AGORA

Desde o último suspiro de Carlos Henrique, Vera havia percebido que a sua vida havia mudado para sempre. Aquela dona de casa sabia que tudo aquilo estava errado, que não era certo carregar o corpo do seu falecido esposo para o porta-malas do carro do seu filho. Mesmo assim, quase no automático, prosseguiu com o plano

Fez quase no modo automático. Tudo fora tão rápido que a mulher mal tivera tempo de refletir sobre os seus atos. Por sorte, tinha a voz calma e o pensamento lógico de Lúcio Mauro para guiá-la.

Obedeceu a todas as ideias de seu menino, pois ainda não estava com condições de pensar por si própria. Aos poucos, porém, começava a despertar daquele transe, e a realidade de sua nova vida tornava-se cada vez mais árida aos seus olhos.

Vera deveria apenas mentir, enganar, dissimular. Coisas as quais jamais estava acostumada a fazer.

Não haveria, no entanto, tempo para ensaiar e acostumar-se. O jogo já começara ali, com a vizinha Maria Efigênia parada ao portão da entrada do lar de Vera Lúcia.

— Tá todo mundo bem, não é? — questionou aquela senhora baixinha. — Vocês foram socorrer Carlos Henrique?

Era flagrante o fingimento daquela fofoqueira; a mão no peito, a face estampada de falsa preocupação. Ela não dormira por estar aflita com os vizinhos, sim porque estava corroendo-se de curiosidade sobre a vida alheia.

De certo, assistir a Vera e ao seu filho empurrando o carro pela madrugada deveria ter sido o ponto mais emocionante da semana de Efigênia.

Ainda, era visível no brilho dos olhos daquela mulher o trunfo por ter essa informação, como se na sua retina estivesse escrito "Você estava fazendo algo escondido, mas ninguém consegue esconder nada de mim".

Vera abriu a boca, tentando falar algo. Não era tão desenvolta quanto o seu rapaz, portanto permaneceu de lábios entreabertos sem emitir som algum. E permaneceu assim por alguns segundos, denunciando ainda mais a culpa de estar fazendo algo errado.

O brilho nos olhos de Maria Efigênia aumentou mais ainda. Vera até mesmo pôde notar o canto da boca da vizinha começar a tremer por conta do sorriso que queria escapar dos lábios dessa mulher.

Uma sombra projetou-se no canto do olho de Vera. Era Lúcio, precipitando-se para evitar um desastre maior. O rapaz colocou-se ao lado da mãe.

Estava infinitamente mais tranquilo do que a sua genitora. Parecia até mesmo estar mais leve do que de costume, enquanto sorria para a vizinha.

— Bom dia, dona Efigênia.

Nesse momento, Vera percebera o brilho nos olhos da visita indesejada desaparecer. Até mesmo o leve sorriso que se debatia para brotar em seus lábios havia morrido.

— Tão cedo por aqui? — Questionou Lúcio. — A gente já acabou de tomar café, senão a senhora podia até entrar pra fazer companhia pra mamãe.

Procurando mais uma vez apoio na figura do seu rapaz, Vera voltou-se para o seu filho, e falou:

— Não, meu amor. É que dona Efigênia tava preocupada com a gente. Ela viu eu ajudando você a empurrar o carro de madrugada e tá achando que alguém aqui de casa foi levado pro hospital.

Nesse momento, Lúcio Mauro sorriu para as duas, enquanto apertava os olhinhos. Era raro aquele rapaz tão calado dar um sorriso como aquele, contudo quando o fazia deixava-o ainda mais belo. Com certo carinho na voz, ele voltou-se para a vizinha e revelou:

— Obrigado, dona Efingênia, mas não precisa se preocupar. O problema foi que eu esqueci uma solução maturando no hospital. Ela demora algum tempo pra ficar pronta. Já tava no fim do expediente, eu tava tão apressado pra voltar pra casa que me esqueci de guardar. Quando lembrei já era de madrugada e eu voltei correndo pro hospital. Não queria que o chefe do meu estágio encontrasse aquilo na minha mesa. Sabe como é, essas coisas de hospital são caras, não podem ser desperdiçadas assim. Se ele chegasse antes de mim hoje, eu teria que pagar por aquilo. Ou, pior, perder meu estágio. — Nesse momento, Lúcio colocou uma mão no ombro dela. A senhora deu um ligeiro recuo, na defensiva. — Não se preocupe com a gente, tá tudo bem aqui em casa. Mamãe só me ajudou a empurrar o carro porque o motor tava frio.

Maria Efigênia deu um sorriso minguado, com dentes amarelos. Qualquer vestígio de trunfo no seu rosto caíra por terra.

Nesse momento, os três ouviram um latido fino e irritante vindo de outro lado da rua. Apenas Lúcio e sua mãe, porém, voltaram-se para a origem do som. Efigênia ainda encarava o filho de sua vizinha, sem saber o que contra-argumentar.

Um chihuahua fugia ela abertura deixada no portão de Maria Efigênia. Avançava diretamente na direção de Vera e do seu filho. Nesse momento, Lúcio falou para a visita:

— Dona Efigênia, teu rato fugiu.

Apenas nesse momento, aquela senhora acordou do seu transe. Quando deu por si, seu cachorrinho estava aos seus pés, latindo para os seus dois vizinhos.

Efigênia abaixou-se com dificuldade para pegar o seu bichinho. Ergueu-se com ele nos braços, segurando o pequeno como se fosse uma criança de colo. A ferinha continuava a latir fino e constante para Vera e Lúcio.

Tentando aquietar o seu pequeno, e único, companheiro, Maria Efigênia começou a falar com voz infantil:

— Calma, Trovão, são os vizinhos da gente.

Nesse momento, Vera quase podia rir. Sempre achara engraçado ouvir um cachorro pequeno daquele ser chamado de Trovão.

O chihuahua, contudo, não parava de latir, enquanto tremia cada vez mais. A criaturinha se debatia, tentando soltar-se dos braços a dona.

Vendo o nervosismo de seu bichinho, Efigênia apenas pediu desculpas por aquilo e voltou rapidamente para a sua casa, tentando acalmar seu Trovão.

Quando aquela senhora fechou o portão de sua casa, Lúcio Mauro voltou-se para a sua mãe e falou enquanto ria:

— Salvos pelo capetinha.

Vera deu um sorriso minguado, enquanto colocou a mão em seu próprio peito. Sentiu a pulsação batendo forte contra sua caixa torácica. Respirou fundo, tentando superar o nervosismo que lhe apertava a garganta.

Seu filho colocou as mãos sobre os seus ombros, falando-lhe com uma voz terna:

— A senhora tem que ficar mais calma. Maria Fofoqueira não é a primeira pessoa que vai fazer perguntas. Tente ficar calma e responder, está bem?

Sem proferir palavra, Vera concordou com a cabeça. Com um beijo na testa da mãe, o rapaz despediu-se, indo abrir o portão da casa para retirar o seu carro.

Quando o veículo de seu menino alcançou a rua única de Vila Margarida, Vera fechou o portão de sua garagem. Logo em seguida, voltou para a sua residência.

Enquanto atravessava o seu pequeno jardim, percebia a carne de seu corpo mais pesada. Seus olhos ainda ardiam por conta de uma noite insone. Seus lábios estavam ligeiramente abertos, e Vera só conseguia respirar através deles, fazendo um pequeno ruído ao passar o ar.

Fechou a porta de seu lar atrás de si. Mais uma vez, olhou ao redor de sua sala. Estava novamente sozinha. Já estivera assim em muitos outros dias, apenas ela e seus afazeres domésticos. Apenas ela e seus pensamentos. Naquele instante, contudo, ter somente a companhia de suas ideias era a pior coisa que poderia lhe acontecer.

Sua mente cansada ainda não formava pensamentos coerentes, e ela não conseguia controlar aquele mundo de sentimentos em seu peito.

Resolveu, portanto, ir tomar um dos calmantes naturais que seu filho lhe deu. Como não era afeita de tomar remédios, certamente aquelas drogas teriam uma potência maior em seu corpo. Precisava de escape, precisava enfim relaxar para conseguir raciocinar melhor.

Tomou dois comprimidos e deitou-se em sua cama. Estava de barriga para cima, olhando o teto branco de seus aposentos. Passaram-se os minutos, talvez até horas, e Vera não conseguiu dormir. Parecia mais que os comprimidos tiveram o efeito inverso.

Na verdade, seus pensamentos não lhe permitiam o descanso. Ela não se permitia o descanso.

A única coisa que poderia fazer era mentir. Para seus vizinhos, para a polícia, até mesmo para a sua querida irmã; a pouca família que lhe restara. E, em suas mentiras, Vera viu apenas a solidão.

Agora, a única pessoa do mundo a qual poderia contar era o seu filho. Um brilhante rapaz que arriscou uma vida promissora apenas para libertar a mãe do pesadelo de conviver com Carlos Henrique.

Vera, portanto, deveria ser forte. Não apenas para si, sim para preservar também o seu menino. O único filho que lhe sobrara.

O seu cúmplice.

Parente Serpente [Livro Completo]Onde histórias criam vida. Descubra agora