Capítulo 1

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Vera Lúcia andava pela única rua de Vila Margarida. Por conta do frio das três e pouca da manhã, a dona de casa encolheu-se, abraçando-se a si própria.

Seus pés calçados com as suas sapatilhas preferidas de ficar em casa davam passos ritmados, porém sem pressa. Naquela madrugada de crime, a nova viúva da região podia apenas ouvir o barulho do seu solado fazendo estalar a areia da pequena rua de paralelepípedos.

Também havia o barulho de sua própria respiração. Estranhamente, o ar passava por seu peito sem muita dificuldade, nem depressa e nem devagar demais. Apenas normal. Até mesmo seu coração não estava dando sinais de maior sobressalto.

Vera caminhava sem hesitação, prosseguindo no seu ritmo particular. Os seus lábios estavam entreabertos, inspirando o ar gélido da alta madrugada. Seus olhos mal piscavam, com as pálpebras ligeiramente caídas. Em seu íntimo, porém, nada estava calmo.

Ainda ecoava em sua mente o barulho do motor do carro afastando-se na avenida. Também podia ouvir o grito preso em sua garganta, quando viu o seu filho sacrificando-se para evitar que a mãe fosse incriminada. E, por fim, podia ouvir os últimos sussurros do seu marido, deitado no piso da cozinha.

Antes de morrer de vez, Carlos Henrique estendeu a mão a sua esposa, enquanto estava caído no chão. Vera recuou, porém não por maldade. Ela simplesmente estava surpresa ao ver finalmente realizado o seu desejo de livrar-se daquele traste.

Mesmo sem prestar muita atenção no mundo ao seu redor, parou ao chegar à frente da sua moradia. Todas as luzes permaneciam desligadas.

Qualquer pedestre desavisado que passasse ali, naquele momento, poderia jurar que aquela residência era um lar tão tranquilo como os demais daquela pequena vila de subúrbio. Aquela mulher, entretanto, sabia de toda a verdade. A última coisa que sua casa poderia ser chamada agora era de comum.

Daquele momento em diante, qual seria a sua atitude? Como manter a compostura, as aparências, após ver o seu marido estrebuchando no chão, enquanto a vida lhe abandonava?

Talvez, Vera devesse agir da mesma forma como quando aparecia com hematomas na pele, e mentia dizendo ser a quina do armário. Por mais estranho que pudesse parecer, seus vizinhos até fingiam acreditar naquela desculpa. De certo, esses indivíduos relevavam essa lorota para escapar do constrangimento que acompanhava a verdade. Será que agora aceitariam com mesma dose de comodismo as suas mentiras com relação ao paradeiro do marido?

Fechou a porta da casa atrás de si. Por enquanto, essas dúvidas ficariam para trás.

Os olhos arregalados daquela mulher fitavam os contornos dos móveis da sua cozinha, iluminados pela fraca luz que entrava pela janela fechada acima da pia. Ficou um longo instante daquele jeito, encarando os vultos na escuridão.

Passou tanto tempo desejando aquela morte que mal pensou no que viria depois. De qualquer forma, o pedido de Vera fora realizado. Seja para sua felicidade, seja para a sua condenação. Não havia mais espaços para talvez.

A nova viúva deu um passo à frente.

Estava na hora de prosseguir com o plano.

Parente Serpente [Livro Completo]Onde histórias criam vida. Descubra agora