Capítulo 52

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O silêncio. Algo tão pouco compartilhado por aquela família. Esse vale onde nenhuma palavra era dita, onde nenhuma palavra poderia ser dita. Não havia, naquele momento, algo conhecido para nominar os sentimentos que permeavam aquela sala.

Dor? Raiva? Medo? Tristeza? Eram definições que apenas arranhavam a superfície. Na falta de compreensão maior, restava apenas o silêncio.

O anoitecer se anunciava, e o crepúsculo já subia aos céus. Aos poucos, as sombras daquele final de tarde cresciam dentro daquela sala de reunião, pois nenhuma luz artificial estava acesa. A escuridão terminava de tomar conta daquela família.

Carlos Henrique estava parado em sua cadeira-de-rodas, atônito. Seu ímpeto de atacar Vera havia fugido ao escutar as últimas palavras de sua esposa.

Lúcio estava quieto, ainda com Ludmila em seus braços. A sua face continuava como uma máscara de mármore; branca e fria.

O revólver que lhe apontava o peito tremia mais do que nunca. O braço a segurar o objeto quase perdia as forças.

Vera trincou os dentes, contudo não fora o suficiente para conter o seu gemido. Doía. Por mais que tivesse ouvido do seu próprio filho, no vídeo, doía naquela mulher falar aquilo em voz alta. Era tornar concreto o horror da verdade que aquela mãe resistia em validar.

Como uma fera abatida, Vera gania. Contorcia sua face em dor. Tentava manter os olhos abertos e vigilantes, contudo as lágrimas ardiam em sua córnea, forçando-a a fechá-los.

Em meio a um som que parecia um gemido e um grito, aquela mãe questionou:

— Por quê? Por que você tirou a minha menina? — puxou fundo a respiração, pois já estava passando mal. — Ela era só um bebê! — Berrou: — Você afogou um bebê!

O corpo em seus braços já estava deixando seus membros dormentes. Lúcio começou, portanto, a voltar-se para a mesa de reunião ao seu lado.

Sabia que Vera não ia atirar nele de pronto, pois a conversa entre os dois não havia chegado ao fim. Logo, não temeu ao sair de seu lugar.

Ainda calmo, o rapaz repousou Ludmila sobre a mesa. Em seguida, colocou-se ereto, voltando-se para sua genitora.

A dona de casa ainda mantinha o filho sob a mira do revólver, contudo já não segurava a arma com a mesma firmeza.

Lentamente, o rapaz suspirou, deixando o ar correr pelos seus pulmões e aquecer a sua garganta. Com sua face suave de sempre, encarou a mãe, sem piscar. Mantendo o tom de voz calmo, o rapaz respondeu:

— Durante meus primeiros anos, foi só eu e você. Tia Ruth vinha em casa de vez em quando. Aliás, eu odiava quando ela ia visitar a gente, mas depois ela ia embora e só ficava eu e você. Por muito tempo, essa foi a nossa vida. Você era minha, existia pra mim. Só que depois veio Carlos Henrique, depois Maria Clara... e, mesmo com tantos anos, ainda veio Fernando. — Balançou a cabeça em tom negativo. — Você seria de tantos. E quando ia voltar a ser só minha? Eu não menti quando disse que fiz isso tudo por você. Fiz tudo isso porque eu quero voltar a ser o teu único mundo.

A cada palavra proferida por Lúcio em seu discurso, o rosto de Vera mudava. Antes tomado por uma expressão de sofrimento, os músculos de sua face perdiam as forças. Agora, apenas o espanto dominava aquela mulher.

Carlos atacou. Jogou o seu corpo sobre Vera. O homem agarrou-a pelo tronco. Com o peso, a mulher não resistiu. Ambos caíram.

O marido olhou para frente. Por conta da queda, a arma soltou-se na mão de Vera.

Carlos apoiou-se com a perna ainda boa. Cravou seus dedos no corpo da esposa, usando-o como apoio para projetar-se para frente. O sangramento intensificou-se. A dor também. Ele grunhiu.

O homem arremessou-se. Vera estava debaixo dele. Carlos, esticou o braço. As pontas dos seus dedos tocaram o cabo da arma.

Faltava pouco para ele virar aquele jogo. Só mais alguns centímetros. Quase.

Uma mão pálida cortou a sua visão. Com um bote, Lúcio Mauro apanhou a arma.

O rapaz ergueu-se. Seu braço esticado apontava para o seu padrasto e a sua mãe.

Vera conseguiu sair de debaixo de Carlos. Ficaram lado a lado, deitados no chão.

Ergueram sua face para o rapaz que haviam criado. Para o homem que agora os tinha sob a mira de um revólver.

Lúcio encaixou a arma no cós de sua calça. Agachou-se, suspendendo Carlos novamente pelos braços. O homem urrou de dor ao mexer mais uma vez sua perna ferida.

O marido de Vera fora recolocado na sua cadeira. Em meio aos seus gritos de sofrimento, o padrasto falava:

— Você matou a minha filha! Foi você, sua bicha desgraçada. Você matou a minha menina...

Súbito, Lúcio Mauro, com os dedos de uma mão, segurou o rosto de Carlos pelas bochechas. Puxou a face do padrasto para si.

Com a outra mão, o rapaz pegava a arma, apontando o cano para a cabeça do homem na cadeira. O estudante inclinou-se, quase colando o seu rosto a do marido de Vera.

Sorrindo de dentes trincados, Lúcio despejava:

— Sim, eu matei aquela porquinha, e agora vou me livrar do leitão. Vocês apareceram na minha vida. Só comecei com ela porque era a mais fácil. Eduarda nem se deu conta da água que tava subindo na banheira. Só deve ter começado a chorar quando foi coberta, mas aí já era tarde demais. Afinal, mamãe tava longe, você não tava em casa. Só tinha eu ali, vendo ela fazer glub, glub, glub!

Afastou-se, ainda apontando a mira para Carlos. Rapidamente, conferiu a sua mãe. Ela ainda estava se levantando.

Sem perder mais o padrasto de vista, Lúcio foi até a sua bolsa carteiro sobre a mesa. De lá de dentro, apanhou uma ampôla.

Levou o pequeno recipiente de vidro até a altura da narina de Ludmila, quebrando-o.

Os vapores do líquido acordaram a moça. Ela esbugalhou os olhos. Viu uma mulher sentada ao chão. Depois, Carlos numa cadeira-de-rodas, com uma perna ensanguentada. E Lúcio a sua frente, com uma arma em mãos.

Sorrindo, o rapaz de cabelos negros agachou-se e falou para a loira:

— Boa tarde, flor. Dormiu muito, quase perdia a festa.

Primeiro, Ludmila tentou falar, contudo percebeu-se amordaçada. Depois, tentou se mover, entretanto estava com mãos e pés atados.

— Ai, que grosseria a minha — disse Lúcio, puxando para baixo a mordaça na boca de sua ex-cúmplice.

Ludmila tentou mais uma vez proferir algo, porém dessa vez a boca seca e a voz rouca a impediam. Engoliu um pouco de saliva para tentar lubrificar a garganta. Ainda com dificuldade na voz disse:

— O que tá acontecendo? Onde eu tô?

— Numa festa em família — respondeu Lúcio. — Você não é bem uma parente... mas com esse negócio de fim da família nuclear, acho que a amante pode ser inclusa também.

Lúcio levantou-se. Olhou para trás. Vera também estava de pé. Mesmo com o rosto abatido, a mãe não tinha perdido a gana de passar aquilo tudo a limpo.

— Chega! — Berrou Vera.

— Ainda não — respondeu Lúcio, sempre plácido. — Ainda tem convidados pra chegar.

Ao longe, podia ouvir-se o ronco de um motor ecoando na frente da fábrica. Lúcio deu um sorriso de dentes escancarados, avisando:

— Pra animar, chamei outras pessoas, como os agiotas que vieram cobrar a dívida de Carlos Henrique.

Parente Serpente [Livro Completo]Onde histórias criam vida. Descubra agora