Capítulo 18

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ANTES


Seus dedos calejadas do serviço doméstico tocaram a mão macia da pele alva daquele rapaz. Envolveu-a com as suas, segurando-a firme, porém sem machucá-lo.

Esse simples gesto era uma maneira inconsciente que ela tinha para tentar prendê-lo ali, para que seu único filho não escapasse.

Com o toque de sua mãe, Lúcio Mauro acordou. Estava deitado na cama de hospital. Seus olhos de um verde escuro profundo encararam os de Vera.

Mais uma vez, o rosto belo daquele rapaz apresentava apenas calma. Havia, no entanto, algo diferente. Lágrimas escorreram na face do jovem.

Os lábios de Vera tremeram. Ela soluçou, tentando conter o choro. Não adiantou, e o seu pranto rasgou-se com mais violência ainda. A torrente desceu pelo rosto daquela mãe, e ela deixou-se levar.

Vera inclinou-se, deitando o seu rosto no peito de seu menino. O pranto saia descontroladamente, enquanto ela o abraçava.

Sentiu a mão suave de seu rapaz lhe alisar os cabelos. A mãe permaneceu chorando, abraçada ao filho. Deixou toda a emoção extravasar. Deixou fluir o arrependimento de nunca ter tentado ser mais participativa, de ter exigido tanto de alguém tão novo durante a sua depressão.

Segundo o médico, a dosagem do remédio parecera não ter sido forte o suficiente para mata-lo tão rápido. Já a psicóloga argumentou que, talvez, aquela não fosse uma tentativa real de suicídio. Afinal, como estagiário de farmácia, Lúcio saberia muito bem a quantidade ideal para conseguir tirar a própria vida.

De acordo com a profissional de saúde mental, aquilo poderia ter sido sim uma espécie de tentativa de pedir socorro. Alguns pacientes podiam, portanto, autoflagelar-se, ou até mesmo cometer atos de "quase suicídio" como uma forma de chamar a atenção para si e seu problema.

Ouvir aquilo só aumentava ainda mais a culpa de Vera. Ela sentiu-se negligente. Por mais calado e independente que fosse o seu menino, ele precisava de sua mãe.

Talvez, o fato de Lúcio ter que cuidar dela muito cedo forçou-o a aprender a guardar seus sentimentos só para si. Mesmo grande, ele quis poupá-la. Vera, no entanto, não poderia mais exigir, sequer aceitar, aquele sacrifício.

Quando conseguiu parar de chorar, a mãe ergueu-se. Sua face estava banhada em lágrimas. A de Lúcio também.

O rapaz tentou esboçar um sorriso, porém seus lábios tremeram. Quando sentiu que iria cair outra vez no pranto, parou.

A mão de Vera alisou a face do jovem, limpando-lhe o choro. Lúcio inspirou profundamente, deixando logo em seguida o ar escapar de seus pulmões. Passou a língua em seus lábios para umedece-los. Com dificuldade, começou a falar:

— Eu não aguentava mais — balbuciou o rapaz, com a voz rouca. — Eu vi a senhora... eu vi de noite...

Levou as duas mãos à sua face, como para cobrir sua própria vergonha. Ainda com a fala lhe arranhando a garganta, Lúcio prosseguiu, de lábios trêmulos:

— A senhora viu a gente... ele não notou porque tava bêbado... Eu não aguentava mais, e a senhora viu a gente.

O rapaz começou a desabar em choro. Vera ficou em pânico, pois jamais vira o filho daquele jeito. Tornou a jogar-se sobre o rapaz, envolvendo-o mais uma vez entre seus braços.

Ainda em meio ao pranto, Lúcio desabafava:

— Desde pequeno ele fazia isso comigo. Dizia que se eu não fizesse, a senhora apanhava... ele me ameaçou... ele me obrigou...

As palavras se perderam em meio ao choro. Vera abraçou o seu filho com mais força ainda, também deixando-se levar pelas lágrimas.

Aquela dona de casa já não aguentava mais. Não podia mais suportar aquele monstro transformando a vida de sua família num verdadeiro inferno. Estava na hora de enfrenta-lo, de uma vez por todas. Estava na hora de matar aquela serpente em sua casa.

***

A bolsa pendia, com a alça sendo segurada por um pulso. Seus ombros estavam curvados, e seu olhar perdido. As pessoas passavam em seu redor, porém Vera Lúcia mal podia nota-las.

Com passos lentos, caminhava pela calçada da avenida. Estava a poucas dezenas de metros do seu lar. Seu corpo estava ali, porém a sua alma não.

Mesmo com toda a dor pela qual passara, mesmo com todo o terror provocado por aquele homem, jamais imaginaria que a sua vida chegasse àquele ponto. Debaixo de seu teto, estava um dos seres vivos mais execráveis ao qual tivera o desprazer de conhecer.

Aquilo era mais do que mau-caratismo. Era mais do que apenas violência. Era algo monstruoso, repugnante.

Vera parou na entrada de sua vila. O porteiro deu-lhe boa-noite. Ela sequer respondeu. Apenas encarava a rua sem saída, toda coberta de paralelepípedos. Um lugar agradável e familiar. Uma máscara perfeita para esconder o horror que era a sua vida.

Caminhava pela rua sem saída de sua morada, preparando-se para um confronto decisivo com Carlos Henrique. Não estava aflita, sequer com ódio. Apenas a certeza de que não poderia mais permitir aquele homem em sua casa.

Ouviu uma voz lhe chamar. Estava tão concentrada no que estava prestes a fazer que não deu atenção. Apenas parou quando uma mão a segurou pelo braço.

Vera voltou o seu rosto na direção de quem a impedia de caminhar. Era Maria Efigênia. A senhora baixinha estava visivelmente excitada, querendo contar algo de importante para a mãe de Lúcio. De certo, era alguma fofoca a qual Vera sequer se importava.

Salivando como um cão que vê um petisco, Efigênia despejou:

— Menina, tá lembrada daquele galego que vivia te dando manga na feira? Fernando o nome dele, né? Acharam ele lá no beco do depósito dos feirantes hoje de manhã. Foi morto com doze facadas, acredita?

Parente Serpente [Livro Completo]Onde histórias criam vida. Descubra agora