O pincel deslizava com suavidade e graça. De modo delicado e bem calculado, aplicava as camadas, os tons, os detalhes. Realizou um último movimento, terminando com mais uma obra.
Afastou-se, admirando a beleza de seu feito. Sorriu. Em seguida, estendeu um espelho para a sua pintura.
A senhora negra de meia-idade pegou o objeto, olhando-se no reflexo. Tomou um susto, sorrindo e quase engastando-se com a emoção que subira em seu peito.
Em nada parecia com aquela mulher que chegara acabada naquela casa de acolhimento. Bianca parecia até mesmo mais jovem.
Começo a chorar, pedindo desculpas por ter borrado a maquiagem. A sua frente, a maquiadora sorriu, dizendo-lhe:
— Não se preocupe. Rímel a gente coloca de novo, isso é besteira. Tirar a tristeza daí é que não tem preço — respondia-lhe Ruth.
A jovem profissional da beleza deu-lhe um abraço. Choraram, juntas. Bianca por lembrar-se do amor próprio, Ruth por conseguir voltar a fazer uma maquiagem completa.
Foram semanas de fisioterapia para recuperar o controle do braço. Depois, meses até que conseguisse realizar os movimentos finos exigidos por sua profissão. Agora, agradecia a sua vitória ajudando as mulheres daquela casa de acolhimento.
Ruth fechou a sua maleta de maquiagem. Levantou-se, levando-a consigo. Estava prestes a ir guardá-la no seu armário, quando a campainha tocou. Como estava na sala, resolveu ir até o jardim da ONG para atender a visita.
Já da porta de entrada, surpreendeu-se com quem estava no outro lado do portão. Era a delegada Taís Ramos.
***
— Obrigada por ter aceitado participar do livro com seu testemunho.
Ao terminar de agradecer, a psiquiatra Hanna Beatriz bebericou mais um gole do café feito por aquela mulher a sua frente. Estavam ambas sentadas à mesa da cozinha da ONG.
Antes, haviam algumas cozinheiras por lá, preparando o lanche da tarde. Essas mulheres, porém, acabaram deixando as duas sozinhas, para conversarem.
Olhando para a xícara de café em suas mãos, a Vera Lúcia respondeu:
— Eu que agradeço por me dar voz. Se tem uma coisa que eu aprendi com tudo isso é que nenhuma pessoa pode ou deve se calar. Quando a gente fala, não é apenas por nós. É por todos os outros. Demorou muito, mas acabei percebendo que a importância de eu falar em alto e bom som. Quero que todo mundo veja, que todos aqueles que sofrem coisas assim escutem. Pois, às vezes, não tem nada mais solitário do que a dor. E é pra essas pessoas que estão se afogando que eu quero que minha voz chegue.
A médica sorriu. Delicada, repousou suas mãos sobre a de Vera, revelando-lhe:
— E é pra vocês que estou fazendo esse livro. É pra isso. Eu sei que, durante o sofrimento, às vezes a vítima nem pode perceber direito o que tá acontecendo, qual é a razão e o motivo dela estar sofrendo tanto. Assim como você, eu quero dar o conhecimento a essas vítimas. Eu quero lhes devolver o poder sobre suas vidas.
Vera levantou-se, emocionada. A médica, bem menos formal do que de costume, também se ergueu-se, abraçando-a.
***
Ruth sentou-se junto com Taís no sofá da casa de acolhimento a mulheres em situação de violência doméstica. Já acomodada, a maquiadora começou a falar:
— Eu sempre quis ir lá na delegacia, ou falar com algum advogado, mas estava tão ocupada na minha recuperação. Depois, tive que voltar a trabalhar aqui na ONG e nos salões, acabei sem tempo. Queria finalmente entender o que cacete aconteceu com esse juiz.
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Parente Serpente [Livro Completo]
Misterio / SuspensoVera Lúcia é uma dona de casa moradora de uma simpática vila de subúrbio. Essa mulher, porém, vive um pesadelo nas mãos de um esposo violento e agressor. Sua história seria apenas mais uma no meio das estatísticas de violência doméstica... se não fo...