Capítulo 48

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O velho carro estacionou mais uma vez aos fundos da fábrica abandonada. Lúcio, no entanto, não desceu de imediato. Ainda com as duas mãos no volante, ergueu o olhar na direção para a entrada de funcionários do lugar.

Não podia mais adiar. Livrou-se do cinto de segurança, inclinando-se para o banco de passageiros. Sobre este assento, apanhou sua bolsa no modelo carteiro. Em seguida, saiu do veículo.

Suspirou. Estava na hora.

***

Havia cometido diversos crimes, tinha ciência disso. Até aquele momento, no entanto, conseguira se livrar de ser apanhado por todos eles.

Não eram apenas os agiotas o motivo de Carlos Henrique esconder-se naquela fábrica abandonada. Era também da justiça, pois sabia que sua condenação seria certa caso o plano dele e de Lúcio Mauro não desse certo.

Mesmo assim, não estava completamente livre. Viver tantos dias naquela fábrica abandonada, sem ter o algo para fazer ou para se entreter, era praticamente como estar na cadeia.

Pior, pois na prisão teria ao menos contato com outros seres humanos. Ali, a única pessoa que aquele homem via, mesmo que esporadicamente, era Lúcio Mauro. E apenas quando esse rapaz vinha trazer alguns mantimentos.

Carlos sentia falta de sua cerveja, das conversas com os amigos no bar, do futebol na TV. Também sentia fala de Ludmila, a mulher mais bela que já havia se interessado por ele. A pele, o cheiro dela, o seu ímpeto na cama.

Carlos até mesmo podia sentir a ausência de Lúcio, e da forma como o rapaz saciava os desejos secretos daquele homem.

Seus pensamentos rumaram para um campo libidinoso. Tanto que já sentia a ereção insinuar-se dentro da sua bermuda. Já levava a mão para seu sexo quando um barulho o fez sobressaltar-se.

Aos fundos, alguém parecia chegar. Estranhou, pois Lúcio trouxera há poucos dias uma feira completa. Logo, o rapaz iria demorar a aparecer de novo, pois fora esse o combinado para não levantar suspeitas.

Carlos levantou-se do colchão. Correu, apanhando uma faca grande sobre a mesa. Escondeu-se atrás da porta do escritório, prendendo a respiração. Ouviu passos. Alguém se aproximava.

— Sou eu.

A voz de Lúcio ecoou do corredor, chegando até aquela sala. Carlos respirou, aliviado, saindo de detrás da porta.

Ao vê-lo segurando aquela faca, Lúcio franziu o cenho. Enquanto o padrasto caminhava para sentar-se numa cadeira, o rapaz repousava sua bolsa-carteiro sobre a mesa de reunião.

— Tá assustado?

— Não sei... acho que tanto tempo sozinho tá me deixando louco. Tô quase subindo pelas paredes aqui.

Num tom mais complacente, Lúcio avisava:

— Não se preocupe. Vim trazer duas notícias boas. Primeiro, tirei o dia pra te fazer companhia — Lúcio aproximou-se de Carlos. — Segundo, isso já tá perto de acabar.

— O que houve, Vera morreu? Foi na cadeia ou você matou ela?

— Não, não é isso — disse o rapaz, alisando o braço do padrasto. — Mas eu tenho certeza que ela não vai durar muito tempo mais. Acho que arranjei uma forma dela partir dessa pra melhor. Sabe essas garotas viciadas em crack que ficam na pracinha do centro, perto da minha faculdade? Elas fazem tudo pra conseguir uma pedra. Acho que posso comprar os serviços de uma dela. Peço pra ela ser presa e se livrar de Vera lá dentro da delegacia mesmo. A gente nem precisa sujar as nossas mãos. E depois disso você pode retornar, pegando o dinheiro do seguro e se livrando da dívida.

Carlos sorriu, levantando-se. Estava tão alegre que até mesmo abraçou Lúcio. Retribuindo o gesto, o enteado questionou:

— Aí a gente vai poder ficar junto como você prometeu, né?

O marido de Vera afastou-se um pouco, deixando a incerteza escapar no olhar. Depois, segurou Lúcio pelos dois ombros, encarando o rapaz no fundo dos olhos. Lentamente, o mais velho balançou afirmativamente a cabeça, dizendo:

— Sim, eu vou cumprir o que prometi. Você tá me livrando de um problemão, sou muito grato.

Um sorriso largo brotou na face do rapaz. Os olhos verdes-escuros daquele jovem brilharam, como uma criança que ganhava um presente de natal.

Empolgado com a promessa de Carlos e levado pelo impulso, Lúcio inclinou-se para beijá-lo. Num reflexo, o padrasto desviou.

— O que é isso? — questionou o mais velho, parecendo estar assustado.

— Desculpe... — murmurou Lúcio, claramente desconcertado.

— Você sabe que nunca gostei dessa veadagem. Não sou bicha pra beijar homem.

Lúcio abaixou o olhar, concordando levemente com a cabeça. Carlos respirou fundo.

O marido de Vera pensou um pouco. Deu um sorriso de canto de boca, dizendo para o rapaz:

— Mas tem outras coisas que você sabe que gosto — falou, enquanto desabotoava a própria bermuda.

Recuperando-se, Lúcio tornou a encarar o mais velho, sorrindo.

Os dois estavam tão envolvidos com aquele flerte que mal podiam perceber, escondida no canto do vidro, a sobra que os observava.

Vera Lúcia.

Parente Serpente [Livro Completo]Onde histórias criam vida. Descubra agora