ANTES
A sua volta, fantasmas e sussurros. Visões embaçadas que se confundiam com seus próprios pensamentos. Os pedestres e carros passavam ao seu lado quase como aparições, como nada mais do que uma simples sensação.
Seus passos eram curtos e lentos. Seu corpo até mesmo parecia mover-se por vontade própria, pois estava tão fora de si que sequer era dona da própria carne.
Vera Lúcia andava pela calçada, sem destino. O sol do meio-dia batia com toda força em sua pele, contudo a mulher nem podia senti-lo, de fato. Apenas prosseguia, sem rumo.
Seus olhos divagavam para o nada, vendo desconhecidos, vendo o passado. Tudo único e misturado.
E assim ficou, nem sabia dizer ao certo por quanto tempo. Aos poucos, os sentidos a traziam de volta para aquele mundo. A dona de casa ergueu a cabeça, olhando ao seu redor.
Viu árvores, grama, pessoas passeando. Por perto, podia ouvir o som de crianças brincando. Ao longe, escutava o som dos veículos em movimento em alguma avenida por aqueles arredores.
Percebeu-se, então, sentada em um banco de uma praça. A sombra da árvore às suas costas projetava-se sobre o seu corpo. A brisa balançava as folhas, produzindo o som característico do farfalhar.
Vera deixou-se levar por aquela música da natureza, pelo som ao redor. Fechou os olhos, guiando-se apenas por seu ouvido. Foi, no entanto, como se colocasse um filme para passar na TV.
Tudo. Toda a sua vida. Era mentira.
Como aquilo poderia ter ocorrido? Como não podia ter enxergado o que estava bem em sua face durante todo aquele tempo?
Fora mais cega do que quando não percebera a sexualidade de Lúcio. Fora mais estúpida do que quando não havia notado o suposto abuso do seu filho cometido por Carlos Henrique. Apesar de todas essas coisas horríveis, havia ainda algo muito pior por trás de tudo.
Onde foi que Vera havia errado? Aliás, ela havia errado? Ali mesmo, sentada naquele banco, podia relembrar, até mesmo sentir, cada momento passado com seu menino.
Podia senti-lo ainda se mexendo em seu útero. O parto. A primeira vez que acolheu em seu colo e lhe ofereceu o seio para alimentá-lo.
Também se recordou de como havia demorado a falar. Vera até mesmo o levara a médicos e fonoaudiólogos. Nada de anormal, seja muscular ou neurológico, estava presente em seu menino.
Até que, num dado dia, quando ele queria um pote de biscoitos ao qual não alcançava, pediu para a mãe. Ela até o abraçou-o e chorou, aliviada.
Anos depois, após descobrir do que seu filho era capaz, Vera questionava-se se ele nunca falara apenas por não querer. Apenas por não ter visto utilidade para aquilo, além de comunicar-se com seus pais.
Revisitava cada momento, tentando entender a gênese, tentando achar pistas para explicar. Quanto mais se lembrava, porém, mais podia tomar-se de uma grande e horrível certeza; estava ali o tempo todo. A real natureza de seu filho.
O olhar distante não era de timidez. A falta de verbalização não era somente uma característica de personalidade. O cuidado com a mãe não era amor. Era tudo jogo, dissimulação e posse.
Seu casamento. Sua filha. Sua irmã. Sua liberdade. Lúcio Mauro arrancou tudo daquela mulher. E, sentada naquele banco, com a brisa do início de tarde ainda a lhe alisar o rosto, Vera Lúcia indagava-se, num sussurro inaudível:
— Como eu deixei?
Ao movimentar os seus lábios, uma ânsia de vômito subiu por sua garganta. Inclinou-se, sentindo uma forte pressão em seu peito.
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Parente Serpente [Livro Completo]
Gizem / GerilimVera Lúcia é uma dona de casa moradora de uma simpática vila de subúrbio. Essa mulher, porém, vive um pesadelo nas mãos de um esposo violento e agressor. Sua história seria apenas mais uma no meio das estatísticas de violência doméstica... se não fo...