Capítulo 23

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Mais um dia trivial, entre tantos outros dias ordinários. Ir para o seu estágio no hospital, realizar algumas manipulações, conversar um pouco na copa com outros funcionários. Nada demais na vida de um jovem universitário suburbano.

Prosseguindo com sua rotina, Lúcio Mauro sentou à mesa com sua bandeja do almoço no refeitório de funcionários. Ao seu redor, algumas enfermeiras e técnicos de diversas especialidades.

O aspirante a farmacêutico esforçava-se para manter boas relações com a maioria daquelas pessoas. Afinal, no ambiente de trabalho, era útil ter o máximo de aliados possível. Dessa forma, passaria despercebido do radar da maioria daqueles indivíduos.

Estava quase terminando uma de suas refeições, enquanto ouvia mais uns casos inusitados vindo da enfermaria de emergência. No televisor do refeitório, passava um programa policial qualquer.

Entre uma garfada e outra, o rapaz olhava para o aparelho, sem prestar muita atenção. Uma imagem, porém, conseguiu capturar seus olhos.

À sua volta, as vozes, as histórias dos trabalhadores do hospital continuaram. Todos estavam alheios ao que se passava no televisor. Alguns até acompanhavam, porém sem o mesmo empenho de Lúcio Mauro.

O rapaz levantou-se, ainda fitando a tela. Algumas pessoas da mesa pararam de falar, observando-o. Ele estava ereto e imóvel. Sem piscar, assistia a notícia que iria mudar a sua vida para sempre.

Os indivíduos à sua volta voltaram-se para direção onde Lúcio olhava. Alguns, perguntavam-se o que poderia ter aparecido no programa policial para tê-lo deixado naquele estado. Outros, no entanto, já sabiam do que se tratava.

Na imagem da TV, um repórter interrogava uma jovem senhora. Ela stava com os ombros arqueados, cabeça baixa, e falava com voz rouca. A face cansada dessa mulher, de olheiras profundas e olhos arregalados, conferia-lhe um ar ainda mais estranho.

Vera Lúcia fora indiciada por assassinato e falso testemunho, segundo o jornalista. Na reportagem, a entrevistada revelava ter feito tudo sozinha. Envenenou o marido, colocou-o no porta-malas do carro do filho e o levou, de madrugada, para jogar no canal da cidade.

Logo em seguida, a reportagem cortou para uma delegada. Taís Ramos ressaltava que, de acordo com o primeiro depoimento de Vera Lúcia, Carlos Henrique havia desaparecido.

Logo, a polícia local iniciara seus procedimentos para encontra-lo. Agora que a dona de casa confessara seu crime, seria acusada por conta da obstrução do trabalho policial.

Sem o corpo do marido, ou outros indícios mais concretos, porém, ainda era cedo para alegar assassinato do indivíduo. Vera estaria presa, portanto, por conta do flagrante de falso testemunho.

A acusada, porém, mesmo sendo réu primária e com residência fixa, negava-se a tentar um habeas corpus. Quando o repórter questionou Vera sobre esse fato, ela respondeu que precisava pagar pelos seus crimes.

Ao final da matéria, Lúcio ainda ficou um tempo estático, olhando a TV. No seu rosto, porém, não se podia nenhuma emoção identificável.

As pessoas no refeitório que conheciam sua mãe o olhavam. Alguns, ainda segurando seus garfos no ar e com comida na boca.

Sem qualquer gesto brusco, ele afastou-se da mesa, deixando sua bandeja lá. Começou a andar calmamente na direção da saída. Atravessou os corredores, subiu alguns lances de escada, chegando a dois andares acima.

Fazendo o seu caminho de costume, foi até a sala de seu chefe de estágio. Sabia que o profissional sempre preferira almoçar em seu espaço.

Quando seu superior o viu, arregalou os olhos. Em seu celular, o chefe também assistia ao programa policial local.

Lúcio não precisou falar nada. Seu professor engoliu rapidamente o seu almoço, autorizando o rapaz a ir mais cedo para casa.

Ainda sem proferir palavra, o filho de Vera acenou com a cabeça, dando meia volta e retirando-se da sala.

Prosseguindo com a sua marcha firme, alcançou o elevador. Mal podia notar um ou outro funcionário do hospital reconhecendo o filho da dona de casa assassina. De certo, já circulava a notícia nos aplicativos de mensagem instantânea dos celulares daqueles trabalhadores.

Ainda centrado em si, alcançou o estacionamento. Saiu com seu velho carrinho, cruzando ruas e avenidas até a entrada de Vila Margarida.

Passou pela portaria de sua vila sem olhar para o porteiro. Parou em frente à sua casa, porém não quis estacionar em sua garagem.

Assim como em todos os seus outros dias ordinários, entrou em sua casa pela sala de estar, batendo a porta atrás de si. Àquela altura, porém, aquele não era mais um dia comum.

O silêncio imperava em seu lar. Estava absolutamente sozinho.

Subiu as escadas de sua residência, abrindo o quarto de sua mãe. Vasculhou em algumas gavetas, encontrando um frasco. Andou com o recipiente até o banheiro.

Lá, abriu a tampa da privada, esvaziando o conteúdo do vidro na louça. Deu a descarga, mandando pelo encanamento os remédios que havia manipulado para a sua mãe.

Lúcio Mauro lavou as mãos na pia. Ergueu o olhar, encarando aquela face sempre tão calma e difícil de ler.

Finalmente, podia falar em voz alta o que realmente estava pensando. Disse, portanto, para si mesmo, encarando o seu reflexo no espelho:

— Eu adoro quando o plano dá certo.

E sorriu.

Parente Serpente [Livro Completo]Onde histórias criam vida. Descubra agora