Prólogo em família

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Na primeira vez em que cogitou matar o seu marido, Vera Lúcia nunca poderia imaginar que o corpo do infeliz fosse pesar tanto. Talvez, mais tarde também pesasse na consciência.

Por enquanto, era um outro tipo de arrependimento que passava em sua mente; o de que durante todos aqueles anos de casamento, deveria ter comprado menos bacon para alimentar aquele homem.

Quando seu esposo estava vivo, entretanto, a convivência com ele era um fardo muito maior para suportar. Aquele indivíduo oprimia o corpo, a alma, o amor próprio de Vera.

O terror daquela mulher, contudo, acabaria naquela noite, pois o seu agressor havia se tornado apenas um defunto pesado demais para se carregar no meio da madrugada.

Os braços de uma dona de casa não estavam preparados para transportar um homem grande de seus oitenta quilos. Mesmo com a ajuda de seu filho, estava difícil cumprir aquela tarefa.

Lúcio Mauro até tentava disfarçar, porém era visível o seu esforço. Mesmo sendo um homem já crescido, o rapaz estava acostumado apenas ao peso da caneta e dos livros, não do seu padrasto.

Todas as luzes da casa estavam desligadas enquanto eles atravessavam a cozinha. Vera carregava as pernas, enquanto Lúcio cuidava do tronco. Davam passos pequenos, quase de meio palmo, enquanto tentavam desviar dos móveis em meio à escuridão.

Mesmo com o grande esforço, ambos tentavam não fazer barulho ao andar. Evitavam até mesmo grunhir por conta do peso. Não adiantava muito. Afinal, não há exatamente uma maneira discreta e elegante de se livrar de um cadáver.

Saíram pela porta de trás, que dava para o quintal de muro baixo. Do outro lado desses tijolos, encontravam-se os fundos da casa de um dos vizinhos. De certo, às três horas da manhã, todos deveriam estar dormindo.

Os olhos arregalados de Vera, porém, vasculhavam rapidamente todos os cantos, como se a vizinhança inteira os observasse. Felizmente, apenas um ou outro vira-lata distante parecia estar acordado, latindo ao longe.

"Malditos cachorros", pensou a mulher do defunto.

Estava com medo. Medo de que um daqueles cães acordasse alguém. Medo de que a flagrassem transportando o corpo do seu marido até o porta-malas do carro seu filho.

Ademais, em um bairro residencial e suburbano como aquele, era fácil ouvir qualquer barulho durante a noite. Assim como seus vizinhos ouviram durante anos as brigas, as agressões, e nada fizeram durante todo aquele tempo.

Em briga de marido e mulher... dizia o maldito ditado.

Chegaram num ritmo lento e desajeitado até a lateral da casa. O velho carro esperava sua nova bagagem com a traseira aberta. Todo o porta-malas estava forrado com película, como sugerira seu filho.

Vera Lúcia quase podia rir ao lembrar que havia gastado todo o rolo de plástico filme para aquilo. Logo, não teria mais como guardar as sobras do jantar.

Mesmo com braços trêmulos pelo cansaço, repousaram com calma o corpo no porta-malas. O carro arriou alguns centímetros, e a lataria velha rangeu um pouco. Após Vera dobrar as pernas e braços do seu falecido marido, seu filho desceu a porta traseira com cautela.

Ainda na ponta dos pés, Lúcio abriu a porta do motorista, abaixando o freio de mão do veículo. Logo em seguida, o rapaz começou a empurrar o carro. Deveria ir o mais longe possível da vila sem precisar ligar o motor.

Lento, o veículo saiu pelo portão aberto da frente da casa. Ouviam apenas o barulho abafado dos pneus estalando as pedrinhas e grãos de areia do chão.

Não demorou muito, e as rodas dianteiras do carro já alcançavam a rua de paralelepípedos de Vila Margarida. Quando já estavam por completo do lado de fora da casa, olharam ao redor.

De um lado, até cinquenta metros, a rua sem saída da vila. Do outro lado, mais uns cem metros à frente, um portão aberto para a avenida. Como Lúcio avisara a sua mãe, o rapaz havia conseguido fazer o porteiro pegar no sono com os remédios roubados do laboratório de sua faculdade.

Ainda cuidadoso, Lúcio girou o volante. Com a ajuda de Vera, o filho conseguiu fazer a curva com o carro, apontando-o na direção da saída da via de paralelepípedos. Prosseguiram com cuidado pela rua. Nenhum sinal de que alguém estava acordado.

Após alcançar a avenida, o jovem olhou novamente para a sua mãe. Antes mesmo que ele entrasse no carro, Vera adiantou-se para o seu filho. A dona de casa fez menção de acompanha-lo, porém Lúcio recusou a ajuda.

— Fique — insistiu o rapaz. — Se algo acontecer comigo, se alguma blitz me parar, não quero que a senhora seja presa também.

— Meu filho, por favor — disse Vera, segurado o rosto dele com as duas mãos —, me deixa ir contigo. Tudo isso foi minha culpa. Eu não quero que você se prejudique ainda mais por minha causa.

Ele tocou uma das mãos de sua mãe e deu um sorriso sem muito ânimo. O rapaz cerrou suas pálpebras, segurando as lágrimas que estavam prestes a cair. Mesmo sem falar, o jovem acenou afirmativamente com a cabeça.

Lúcio entrou no carro, assumindo o volante. Vera contornou o veículo, dirigindo-se para a porta do banco do carona. A dona da casa estendeu a sua mão para a maçaneta.

Estava travada.

Lúcio trancou-se dentro do carro. Deu a partida, preparando-se para ir sozinho. Vera ergueu um punho.

A mulher queria bater no vidro, implorar para que seu filho não fizesse mais aquele sacrifício por ela. Não suportaria a culpa por arrastar seu menino para aquele caminho. Queria gritar para que ele a deixasse ir no lugar dele.

Não podia. Fazer algum barulho mais forte do que o motor do carro poderia condenar a todos de uma vez só.

Calada, Vera Lúcia viu aquele carro levar a razão de seu sofrimento e sua redenção. Aos poucos, as lanternas traseiras do veículo afastavam-se, até desaparecer numa esquina qualquer no meio da avenida deserta.

E viu-se sozinha naquela escuridão. Apenas ela e suas incertezas. No seu íntimo, porém, um novo sentimento começava a insinuar-se.

Alívio.


Parente Serpente [Livro Completo]Onde histórias criam vida. Descubra agora