Abril de 2017 — Décima quinta consulta
Miguel
Estava a olhar aquela grande tela branca a minha frente. Fazia um bom tempo em que não nos víamos. Em que eu não lhe contava minhas lamentações e fúrias e, por algum motivo, achei que seria prudente fazer aquilo naquele momento.
Eram tantas cores. Tantas ideias as quais eu queria recusar. Porém, algo dentro de mim apenas dizia: “Siga em frente”. E então, os primeiros traços começaram a surgir. Minhas mãos tomavam conta sem que minha mente fizesse alguma ideia do que sairia ali. Eu apenas segui minha voz interior.
— Vai ficar aí me olhando, ou vai fazer logo sua pergunta? — questionei minha irmã que estava escorada no batente da porta encarando-me incansavelmente.
— Eu não queria te atrapalhar num momento tão íntimo, mas, já que deu liberdade... O que deu em você?
Suspirei.— De verdade? — olhei para ela — Não faço a mínima ideia. Apenas deu vontade. E o pior, nem eu mesmo sei o que estou fazendo.
— Achei que nunca mais pintaria.
— Eu também — digo encarando a tela.
— Uma coisa que eu nunca entendi... Por que parou de pintar quando nossos pais se separaram se era esse o seu refúgio? Não deveria ser ao contrário?— Eu acreditei que fosse, mas estava enganado. — Melissa se senta ao meu lado como se pedisse para eu dar continuidade à história. — Eu retratava meus sentimentos de fúrias, minhas decepções e frustrações, e acreditava que aquilo me faria bem, porém, eu olhava para a tela com todos os seus traços de fúria e ficava me lembrando do motivo pelo qual aquela imagem estava ali. Aquilo me aprisionava ainda mais.
— E o que fez pra descarregar o estresse?
— Procurar por aquilo que me divertia. Que me fizesse esquecer e não lembrar. Que me fizesse entender que eu não poderia mudar aquela condição. Quando tocam no assunto de nossos pais, hoje já não dói na mesma intensidade.
— Não seria porque viemos pra cá?
— Pode ser. Acho que isso ajudou. Sem contar as minhas aventuras nas alturas. Quer algo mais libertador que voar ? É o que eu falo para Clarissa, procurar por aquilo que te faça esquecer que você tem problemas os quais você sabe que não pode resolver. Apenas, aceitar e aprender a lidar. A viver e a conviver.— Você fala tanto nessa Clarissa que estou com vontade de conhecê-la.
— Sabe que não faltará oportunidade — falo acabando de ter uma ideia. — Se você não fosse para o lado de exatas, te contrataria como minha secretária. Ultimamente, anda me dando muitas ideias.
— Ou você que anda muito inspirado — levou seu olhar para a tela. — Mal posso esperar para ver o que sairá daí. Ou melhor, dessa sua mirabolante cabeça. — levantou-se se despedindo e saiu.No dia seguinte, Clarissa teria yoga. Fiquei o dia todo imaginando o desastre da vez. O que pra ela era uma martírio, para mim era diversão garantida. E, só de imaginar, eu já estava dando risada.
Ela já estava pronta quando eu cheguei. Usava uma calça jeans e uma regata. Sentia que Clarissa não se sentia a vontade com tais roupas, faltavam-lhe alguns acessórios, faltava-lhe vivacidade, e que melhorava quando a mesma sorria.
Surpreendi-me quando a flagrei lendo um livro. Era Bagagem de Adélia Prado e ela estava tão concentrada na leitura que, se tivesse mais tempo, eu não ousaria nunca, despertá-la.
Limpei a garganta e Clarissa não me ouviu. Na terceira tentativa, ela apenas dirigiu seus olhos de encontro aos meus. Seu semblante não era nada empolgante. Clarissa parecia nutrir alguma espécie de raiva e, confesso, se não a conhecesse muito bem, poderia ficar até amedrontado.— Eu não fiz nada, eu juro. — estiquei a mão em sinal de rendição e Clarissa apenas semicerrou os olhos.
— Claro, quem o vê assim, parece ser tão inocente.
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Ensaios de borboletas
ChickLitClarissa é uma mulher delicada, sensível e muito afetuosa. Apaixonada por música clássica, não é a toa o seu talento pelo violino. Uma mulher que gosta da tranquilidade e dispensa grandes aventuras. Com uma carreira brilhante, um noivo dedicado e um...