Notas da Autora

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TUDO O QUE VOCÊ PRECISA SABER SOBRE PONTE BELO & OS VALE

Não há nada de excepcional em Ponte Belo – a não ser que você considere seus míseros 80 mil habitantes, uma cafeteria bastante particular e uma Universidade Federal com vinte cursos que ninguém sabe muito bem como veio parar na avenida que cruza o Meio do Nada com o Lugar Algum. Seus moradores, peculiares, vão dizer que é uma cidade bastante acolhedora, apesar do vento frio que corta suas ruas 360 dias por ano; que eles têm o melhor café do mundo e que o cheiro do rio poluído por produtos químicos jogados, clandestinamente, em sua água, não é assim tão ruim quanto parece. Na verdade, talvez vocês até achem que tem certo charme – ainda que não há charme nenhum nisso. Outra coisa que não tem charme nenhum, e que é bastante irritante, é como eles protegem e se vangloriam por habitar a família Vale em suas terras.

Também não há nada de excepcional nos Vale – a não ser que você considere a escassez de melanina, os olhos incrivelmente verdes e os queixos estranhamente quadrados que parecem só ficar bem naquele tipo de genética em especifico. Ou, se você for mais pragmático, na conta deles no banco (esta sim uma coisa para lá de excepcional). Mas, fora tudo isso, é só uma família como outra qualquer de uma cidade pequena perdida na vastidão do universo – o que, basicamente, significa que é mais uma cidade que ainda vive em voto de cabresto em pleno século vinte e um, de uma maneira tão inconsciente que seus habitantes nem se dão conta de que perpetuam isso em seu dia-a-dia ao fomentar a posição e o respeito que os Valenianos causam por toda a cidade.

Você, com certeza, já ouviu falar de alguns deles. São seres bastante comuns, desconsiderando todo seu fator genético incrivelmente branco no meio do Brasil. É que, preconceitamente, se é que essa palavra existe, eles perpetuaram a ideia de que eram bons demais para se envolverem com qualquer pessoa que fosse um tom de pele mais escuro que eles – o que, basicamente, era uma coisa bem fácil de achar por aí. Infelizmente, a conta bancária deles não é proporcional as suas personalidades, o que resultou em várias cabeças de bagres, com muito poder, perambulando e dominando uma cidade inteira com sorrisos condescendentes e posturas idiotas (ou vice-versa). Com raras exceções, a gente podia achar alguns exemplares perdidos, experiência humana que deu errado no genoma dos Vale, e que, por tudo isso, merecia ter uma história contada.

Uma dessas pessoinhas é Dafne Vale, a filha mais nova do mais poderoso da família toda, que era não só obrigada a conviver com seu whiteproblem diário de ser muito mais respeitada do que seus dezessete anos pediam para ser, como ouvir brincadeiras e insultos de que ela só chegara aonde chegara – isto é, no time principal de vôlei da cidade – porque era, oras, uma das donas da cidade. O que é verdade: Dafne podia mesmo ser considerada a herdeira de Ponte Belo. Mas não tão verdade, porque Dafne tinha pouco de um Vale e era muito boa esportista para ter isso negligenciado. Infelizmente para ela, isso era constantemente esquecido, dada a sua beleza excepcionalmente fora do comum que parecia ofuscar as câmeras e os olhos de todo mundo.

O que, pensando melhor, não era assim tão ruim, considerando o segredo que a garota escondia tão bem em sua cabeça, trancafiado a sete chaves em seu coração, de um jeito tão seguro que, às vezes, até ela esquecia. Porque a garota não era boba nem nada. Ela sabia que já era difícil ser respeitada dentro do seu clã poderoso por ter tanta personalidade distribuída em seus quase 1,80 de altura; a considerar que todas as mulheres daquela família pareciam ter herdado a identidade de uma ameba (uma coisa que, particularmente, deixaria a matriarca da família, dona Eliodora, bastante triste se ainda fosse viva). Mas nada poderia destruir seu reinado mais do que se todos eles descobrissem que uma Vale era tão fora da linha a ponto de gostar do mesmo sexo – isto é, a ponto de não gostar de garotos.

E Dafne Vale podia até se identificar muito pouco com seu sobrenome, só que não era boba. Ela não queria destruir seu castelo e seu conto de fadas. Nem mesmo deixar de ser rainha, em horas eventuais que podiam ser bastante divertidas. E tudo estava em paz, até que um tornado revirou seu mundo do avesso e deixou tudo ao contrário.

Mas aí já não é a história de Ponte Belo, nem de Dafne, nem dos Vale.

E isso fica para outra hora. Quando os ventos pararem de soprar tão fortes a ponto de oscilar minha internet, quem sabe...

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