A escola estava um pandemônio que deixaria Caos organizado.
Com os resultados dos testes vocacionais e as notas do primeiro bimestre, metade dos alunos do terceiro ano estavam surtados com a proximidade do ENEM e dos vestibulares; metade estava pirando com as notas baixas e o tempo que precisariam correr atrás. E dois deles estavam sem ação.
Fernando e eu não sabíamos muito bem como nos portar. Não que em algum momento soubéssemos, mas a verdade é que, como meu amigo tinha as maiores notas da sala em quase tudo – com exceção de literatura – e já tinha muito claro na sua cabeça o que faria (Robótica, e que Deus o protegesse!) ele não precisava arrancar os cabelos tentando decidir no match-point do tie-break.
E eu...
Para mim, o vestibular me servia de muito pouco. Não conseguia pensar em nada para fazer que não fosse estar numa quadra laranja, atacando uma bola há 80km/hora. Eu sabia que tinha que ter um plano B, eu sabia que a vida de atleta no Brasil era muito difícil, eu sabia que todo mundo esperava que eu continuasse o legado bem-sucedido da minha família. Mas o problema é que eu também sabia o que queria. E, depois que a gente descobre o que quer, é muito mais difícil dar as costas pro seu sonho e viver da realidade.
Como esperado, minhas aulas com Fernando se separam logo no primeiro dia de intensivo de cursinho preparatório. Eliodora tinha uma política intensa de ensino a curto tempo, que consistia em começar por aquilo que tínhamos mais facilidade, diminuindo o que eles chamavam de custo-benefício, então não era de estranhar que fui parar nas aulas de História e ele de Matemática. Talvez nos encontrássemos em Biologia, mas era difícil dizer.
— Você vai ficar bem? – pergunto, no fim da tarde da segunda-feira.
O crepúsculo do lado de fora estava numa coloração bonita, vermelho, laranja, amarelo e azul misturado como uma pintura de Van Gogh. Infelizmente, aquela beleza toda estava perdendo por mais horas de aula sem fim dentro da prisão do ensino médio.
— Fernando sempre fica bem nas aulas de matemática.
É uma verdade, então concordo enquanto encho minha garrafa de água.
— A mãe de Fernando acha que ele precisa se adaptar a um dia sem Dafne.
— O que?
— Dafne vai ser uma atleta famosa que viajará o mundo todo. E Fernando vai estudar Robótica no ano que vem. Os dois vão se ver muito pouco.
Meu queixo cai, porque não tinha pensado nisso. E pensar nisso dói.
O sinal toca e Fernando mexe os dedos da mão, seu sinal de nervosismo, se afastando para a classe de matemática, do outro lado do corredor. Eu demoro um tempo, ainda, segurando a garrafa, em frente ao bebedouro.
— Ei! – Filipe fala, me dando um leve empurrão – Posso beber ou a Rainha vai ficar mais tempo contemplando a máquina prateada?
Resmungo uma resposta e vou para a sala de Otávio. Ele me dá um sorriso e solta um "se não é minha aluna preferida", me fazendo corar. Felizmente, não há mais do que sete pessoas na sala. Aos poucos, alunos de outras escolas aparecem e eu me encolho no canto com medo de ser notada.
Otávio me faz a maior parte das respostas, o que me deixa tão desconfortável quanto orgulhosa das minhas horas de estudo. É algo estranho, mas eu sou mesmo estranha. No final, ele distribui uma lista com cento e oitenta exercícios que faz os alunos de fora do Eliodora resmungar por alguns minutos. Eles não estão acostumados com a pressão que temos, então nós olhamos para eles como se eles fossem os ETs, do mesmo modo com que eles olham pra gente, porque nenhum de nós reclama.
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Relicário
Teen FictionVENCEDOR DO THE WATTYS 2017, NA CATEGORIA "ORIGINAIS" Dafne era uma Vale e, como tal, devia se esforçar para perpetuar o modelo perfeito de família tradicional brasileira que tinha. Pelo menos, era isso que seus pais berravam para ela, toda vez que...