VINTE E NOVE

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 — Eu sabia que isso ia acontecer, assim que esse pessoal do outro lado da cidade viesse para cá...

— Claro que foram eles, nosso bairro era muito seguro antes da escola abrir vagas para esse tipo de pessoa...

— Ah, viu só? As aulas começaram hoje. Não é apenas coincidência...

— Você acha que foi por causa de drogas?

— Claro que foi por causa de drogas, olha o estado dessa garota...

— Com licença, vocês poderiam ir para trás da faixa? Atrás da faixa, minha senhora. Garota, você! – o policial me chama e eu pisco, ainda atordoada. – Atrás da faixa.

Karine me segura pelo cotovelo, me afastando. Uma outra policial vem até nós. É Karine quem fala o tempo todo, eu ainda não consigo tirar o olho da cena a minha frente. A perícia está fazendo seu trabalho de um jeito que não parecia, em nada, com as séries de televisão norte-americana, e a cena é quase esdrúxula de tão estranha. Vejo eles colocarem o corpo de Lilian no saco plástico preto, vejo eles analisarem a cena, vejo as conversas dos policiais e, também, os comentários de quem se aproximou.

Fernando segura minha mão e eu o encaro. Ele também não para de olhar a cena. Quase não pisca, mas os dedos da sua outra mão se mexem no ritmo típico que denuncia seu nervosismo.

— Dafne – Karine aperta meu ombro –, você poderia dizer para a policial o que você viu. Infelizmente você é uma testemunha...

Engulo em seco. Minha mente é uma confusão enorme de informações e eu não sei por onde começar. Preciso avisar meu irmão. E Vênus. E, droga, Emily. Meu peito se aperta e tenho vontade de correr, mas a policial continua me encarando, com as sobrancelhas arqueadas.

— Eu não vi muita coisa. Eu... estava aqui fora, esperando Karine chegar, com Fernando, então ouvi um barulho. Mas como não tem lua, então não dava para ver muita coisa. Eu vi que era uma confusão e pedi para Fernando se levantar, para gente ficar dentro da escola, mas aí... antes de ficar em pé...

Respiro fundo e a policial me dá um sorriso gentil, embora mantenha a expressão neutra. Karine aperta mais a mão sobre meu ombro, me trazendo para perto dela.

— Então, ouvi o tiro. E aí levei Fernando para atrás do carro, para o caso de olharem para cá... quando voltei a olhar, ela já estava no chão, sozinha. – Eu olho para o saco preto sendo carregado.

— Vocês já sabem quem é a garota?

— Nenhuma identificação nos bolsos. Provavelmente, é alguém que estava devendo um traficante, mas vamos...

— Ela se chama Lílian.

A policial olha para mim de novo e Karine arqueia a sobrancelha para mim.

— Fernando quer ir para casa. Fernando não está gostando disso.

— Eu a vi uma vez. E conheço a irmã dela. Eu posso ligar para ela. Eu acho.

— Dafne... – Karine sussurra.

— Acho que isso muda tudo. Acho que agora você precisará me acompanhar até a delegacia, Dafne. E, como é menor de idade, é bom ligar para algum familiar.

— Certo. Você pode nos dar um minuto? – Karine diz.

A policial assente e se afasta. Karine me puxa para um canto, sem tantas pessoas, e eu levo Fernando comigo, porque, de todo modo, ele está segurando minha mão com tanta força que não soltaria mesmo. Apesar da viatura e das pessoas, a rua continua escura e o poste que está sobre nós pisca, ficando mais tempo apagado do que aceso.

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