Segunda-feira é dia de almoçar arroz, feijão, bife e batata frita no cardápio de Fernando. Eu o ajudo a montar o prato, quando entramos no Restaurante, e depois volto para a fila para escolher o meu – uma porção recheada com todos os carboidratos que achei. O treino de vôlei começa daqui uma hora, então temos tempo. Ele praticamente não se mexe até eu me sentar ao seu lado.
Há algumas coisas peculiares em sujeitos com autismo – tenho certeza de que você já leu, viu ou ouviu sobre isso algumas vezes. Embora eles sejam bastante rotineiros – do tipo que precisam mesmo seguir à risca todo seu planejamento – e eu conviva com um há 10 anos, ainda consigo me surpreender com alguns dados interessantes sobre Fernando: ele é sensível a qualquer coisa – toque, som, e, principalmente, olhar. É por isso que jamais me sento de frente para ele, para que ele não se sinta obrigado a me encarar.
— Fernando já pode começar a comer? – ele pergunta, encarando o prato.
— Com certeza.
Nós comemos em silêncio, e enquanto bebo meu refrigerante zero, Fernando mastiga o mesmo número de vezes para cada pedaço de comida que leva a boca. Como eu sei disso? São dez anos de amizade, nada na rotina de Fernando é um segredo para mim.
— Segunda-feira é o dia preferido de Fernando – ele diz, por fim, quando come a última batata-frita.
Eu rio e dou um esbarrão de leve no ombro dele, então meu amigo me encara por um segundo, pisca os olhos verdes e desvia o olhar.
De um modo geral, Fernando foi um autista que deu certo – isto é, como sua mãe sempre diz, um autista que se encaixou o máximo que pode nas normas da sociedade. Ele sabe sorrir, olhar nos olhos quando pensa que é necessário, e quase nunca se machuca quando algo sai do seu controle – exceto quando alguém grita perto dele, ou força um contato que ele não aceita.
Penso em Fernando como penso no Bicuço – esse mesmo, da série Harry Potter. É necessário esperar que o hipogrifo faça o primeiro movimento, para saber como iremos reagir. E é basicamente isso que define uma boa relação com Fernando.
Acho que só nos damos bem porque, quando ele chegou a Ponte Belo e ao Colégio Eliodora, eu queria tanto contato humano quanto ele. Eram tempos difíceis para mim, com meu irmão – e única pessoa que parecia me entender naquela família de pirados – longe. Eu era muito tímida na época e gostava de olhar nos olhos das pessoas tanto quanto Fernando gostava. Então, bem, quando ele se sentou ao meu lado e eu fui a única, de uma sala inteira, a não importuná-lo com nenhuma pergunta típica de primeiro dia de aula, eu o conquistei sem querer.
Ele me conquistou na hora do recreio, quando abriu a sua lancheira de Star Wars – franquia que eu não conhecia, mas seria obrigada a conhecer depois de tantos anos sendo amiga de um nerd (e irmão de outro nerd), tirou um sanduiche com muito cheddar e falou:
— Fernando oferece à loira ao lado dele.
Eu achei graça porque ele se referia a si mesmo em terceira pessoa. Continuei achando graça pelo resto do dia. Era diferente e inusitado, e eu era uma criança. Ele parecia não se importar com meu sorriso, porque naquela época, na verdade, ele mal levantava os olhos por trás de sua franja de cabelo preto – franja que só abandonou quando chegou aos 14 anos. Só parei de achar graça quando, no fim da aula, meu professor me chamou num canto, depois que todo mundo saiu, e disse:
— Então, Dafne, sei que é uma garota muito inteligente, mas você sabe o que é autismo?
Claro que eu não sabia o que era autismo.
Embora hoje isso faça tão parte de quem eu sou que é até estranho quando conheço alguém que não sabe conviver com essa diferença azul em seus dias.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Relicário
Teen FictionVENCEDOR DO THE WATTYS 2017, NA CATEGORIA "ORIGINAIS" Dafne era uma Vale e, como tal, devia se esforçar para perpetuar o modelo perfeito de família tradicional brasileira que tinha. Pelo menos, era isso que seus pais berravam para ela, toda vez que...