Amarelo e azul geram uma cor nova, bem próxima de amarelo-esverdeado. É isso que vejo, é isso que sinto, é isso que me preenche inteira enquanto os lábios da Garota Azul se movimentam contra os meus, num movimento suave, como um bater de asas de uma borboleta no final de uma tarde quente, em meio as flores.
Não estamos num fim da tarde.
Não estamos ao ar livre.
Pelo contrário, é meio de madrugada e estamos dentro do apartamento de meu irmão, onde ele e minha cunhada dormem três portas de distância daqui. O perigo é iminente e a adrenalina deixa tudo mais intenso, em neon. Mas ainda é amarelo-esverdeado. Sempre será amarelo-esverdeado entre nós.
— Dafne – ela sussurra, numa voz que nunca a vi usar antes. Eu abro os olhos. A essa distância, a essa meia-luz, seus olhos são quase no tom celeste. É intenso. É misterioso. É convidativo. – Você precisa relaxar.
— Isso é algo que eu nunca consegui fazer – confesso.
Emily sorri – claro que ela sorri.
A mão dela encontra a minha, sobre minha coxa. Ainda está gelada, enquanto eu pareço estar em ebulição. Emily não comenta sobre isso. Sinto seu carinho nos meus dedos, delicados como nunca vi essa garota ser. Os dedos dela sobem pelo meu braço, fazendo curvas até alcançar meu cotovelo. E, então, desce ainda mais lentamente, até chegar ao pulso.
É estranho.
Não, não é estranho. É o fato de que devia ser estranho, mas não é, que é estranho. É para ser errado. É para eu me sentir suja. É para eu ter entrado em desespero ou ter nojo. É o contrário do que todo mundo me ensinou sobre relacionamento. É o oposto do que minha família me fez acreditar que é perfeito.
É bom.
Devia estar apavorada, mas não estou. O que corre no meu corpo é bem diferente de medo ou asco. É alguma coisa que não tem cor, não tem forma, não tem nome. É libertação. É o novo que se abre e, por enquanto, não assusta. É convidativo e instigante e eu quero mais.
Eu quero muito mais disso tudo que me envolve.
Dessa vez, são meus lábios que encontram os de Emily. Dessa vez, não há cor alguma. É escuro onde estamos, é silencioso, é aconchegante. Eu movo minha boca sem saber se é como deve ser feito, mas não me importo. Quero sentir. Quero provar. Quero sugar tudo o que encontrei aqui, porque não achei em nenhum outro lugar.
Emily não reclama ou questiona. A maciez dela sede, aos poucos, a uma dose quase de desespero e agilidade, enquanto o beijo se prolonga. Sua língua é áspera e, por um instante, sinto cócegas. Quase rio. Mas a graça morre quando meus olhos encontram os olhos azuis dela, outra vez.
Sua boca está vermelha agora, tentadora como a última maçã do Éden. Quero senti-la uma vez. Quero beber todo o veneno. Quero me intoxicar disso, porque isso me faz me sentir bem. Me faz me sentir viva. Como só havia sentido numa quadra de voleibol.
Então, estamos quase grudadas. Posso sentir seu corpo contra o meu, os ossos finos, a largura estreita de Emily contra minha própria altura, meus músculos duros e rígidos conseguidos com horas exaustivas de treino. Há toques e mais beijos e mais toques e beijos, então é um suspiro. Meu, eu acho. Dela, talvez. É intenso e volta a ser colorido, mas não há uma cor específica – é como se todas as cores do mundo tenham se juntado, mas sem se misturar. A mistura dos pigmentos seria branco. Branco é pureza. Branco é tudo o que não podemos ser.
Alguém tosse, me fazendo dar um pulo do sofá. E, no segundo seguinte, a luz é acesa.
Eu fecho os olhos, me encolhendo com a claridade invadindo meu espaço pecador. A leveza de um segundo atrás pesa meu estômago e sinto nojo pela primeira vez. Nojo de mim, não da situação. Todas as vozes ouvidas durante minha vida voltam com força na minha cabeça, tão nítidas que quase grito para me deixarem em paz.
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Relicário
Teen FictionVENCEDOR DO THE WATTYS 2017, NA CATEGORIA "ORIGINAIS" Dafne era uma Vale e, como tal, devia se esforçar para perpetuar o modelo perfeito de família tradicional brasileira que tinha. Pelo menos, era isso que seus pais berravam para ela, toda vez que...