Bati contra uma barreira antes de conseguir sair do condomínio e cambaleei para trás, a vista escurecendo por dois segundos. Praguejei baixinho porque nem mesmo conseguia fugir quando queria fugir, mas antes que caísse uma mão me segurou me puxando de volta.
— Daniel! – exclamo, piscando os olhos, a cabeça ainda zonza.
Meu primo mais velho dá um de seus típicos sorrisos, com aquele ar de debochado de sempre, provavelmente para conseguir suportar a ridícula família que vivíamos. Havia olheiras profundas em sua pele clara, o que denunciava que ele devia estar voltando de mais um plantão no Hospital. Mesmo assim, mesmo que estivesse claro o cansaço dele, Daniel ainda sorria.
— Tá indo tirar quem da forca, doçura? – ele pisca, abrindo mais o sorriso. Reviro os olhos para sua mania ridícula de chamar as garotas de doçura, mas, de um modo ainda mais insano do que alguém usar aquela palavra nos dias de hoje, tudo combinava com ele.
— Só tentando reverter a linha temporal, como no Flash – brinco, dando de ombros.
— Faz isso não, doçura – ele ri – Nada realmente fica bom depois que qualquer pessoa se atreve a mudar o futuro. Isso desde Martin, lembra? – eu sorrio e ele arqueia a sobrancelha, suas mãos alcançando meu queixo – O que houve no seu rosto? – e seus olhos se nublam – Quem te bateu?
É claro que ficou marca, praguejo de novo. Eu sou branca demais a ponto de qualquer esbarrão deixar roxos por uma semana.
— Um oferecimento Criação Família Vale de Bons Costumes – tento manter o bom humor.
Que se esvai completamente do rosto de Daniel, deixando-o com uma máscara dura bem típica dos Vale quando sentem raiva: os olhos verdes ficam cinzas, as pupilas se cerram e o maxilar fica duro, o que faz todas as pessoas que estejam perto recuar. Mas eu não recuo, porque, afinal, sou uma Vale também.
— Nada de novo sob o sol, Dan – dou de ombros.
— Eu ainda vou matar seu pai na porrada – ele cospe, não me dando atenção – Juro que vou.
— Ele não merece tanto.
— Sério? Você fez uma partida incrível ontem e é assim que ele te trata? Te socando?!
— O vôlei nunca foi uma prioridade para meus pais, não é? – digo, enfiando as mãos no bolso da calça – Eles até podem manter o time da cidade, mas isso não quer dizer que eles gostem de ter uma filha atleta.
— E do que é que eles gostam, porra? De uma filha anencéfala como sua irmã?!
Dou uma risada, sem me conter, e Daniel sorri, pela primeira vez desde que viu as marcas no meu rosto.
— Você precisa colocar um gelo aí, Daf – seus dedos tocam minha bochecha de novo – Senão, vai deixar marcas por uns dois dias.
— Não pode ter sido tão forte.
— Foi – ele cerra os olhos – Você que é mais forte do que pensa.
— Tanto faz. Não vou voltar para casa e tô sem a chave do Pedro, porque saí correndo – reviro os olhos – E você atrapalhou minha fuga.
— Vamos tomar um café na Lua – ele passa o braço pelos meus ombros – Ela deve ter gelo para você.
— Você não estava indo descansar?
— Mudei de ideia – ele me sorri – Afinal, mais uma hora acordado não vai me matar, depois de doze horas em pé, né?
— Você é maluco!
— Como diz uma amiga minha – ele inclina a cabeça para o lado – As melhores pessoas sempre são. Além disso, se eu te deixar sair daqui desse jeito, e Pedro desconfiar, eu sou um homem morto. E se há uma lei na vida é que ele tem que morrer primeiro do que eu, para eu ter chance de conquistar a mulher dele.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Relicário
Teen FictionVENCEDOR DO THE WATTYS 2017, NA CATEGORIA "ORIGINAIS" Dafne era uma Vale e, como tal, devia se esforçar para perpetuar o modelo perfeito de família tradicional brasileira que tinha. Pelo menos, era isso que seus pais berravam para ela, toda vez que...