TRINTA E SEIS

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 — Fernando não entende – meu amigo balança a cabeça cinco vezes, em negação. Há uma mancha vermelha no seu rosto e seu nariz ainda escorre sangue, apesar de Lavínia e eu estarmos tentando controlar há mais de cinco minutos. Os olhos dele, quase sempre azulados, agora parecem uma sombra de tristeza que dói meu coração de um jeito quase sufocante. Não sei se tenho mais vontade de gritar ou de chorar, mas ignoro as duas sensações para ficar ao lado de quem importa nesse momento.

— Isso significa que Fernando é melhor do que 90% das pessoas desse lugar – Lavínia diz, em tom gentil.

Ele pisca. Por um momento, acho que vai chorar. Nunca vi meu melhor amigo chorar e isso me enfraquece tanto que, se eu não estivesse sentada no chão do pátio do Eliodora, teria caído.

Lavínia parece mais inteira do que eu, portanto é ela quem está cuidando melhor dele.

Tudo isso é estranho. Fernando nunca deixou ninguém além de mim ou de sua mãe se aproximar muito. Mesmo que ele tenha sido um adolescente neuroatípico bem-adaptado na vida escolar e sem grandes problemas na vida social, se mantinha tão distante das pessoas que, mesmo que elas quisessem (e poucas queriam, na verdade) não chegavam muito próximo. Mas seja porque sabe que Lavínia é minha colega de time, seja porque compreende que é minha amiga, ou seja porque Lavínia tem muita segurança para se referir a ele, sem se sentir incomodada com a falta de olhar e as vezes que ele ignora o que fala, Fernando não se importa com ela por perto.

— O que Fernando fez de errado?

— Nada – Lavínia responde, enquanto troca o algodão sujo de sangue por um limpo. – As pessoas são idiotas, Fernando. A culpa não é sua.

Ele balança o corpo para frente e para trás e eu sei que isso não é um bom sinal. Penso em ligar para Karine, mas não quero preocupá-la demais. Não quero me sentir culpada por isso ter acontecido. Não quero me sentir culpada por não ter estado perto.

Eu sei, tenho estado distante e alheia ao que acontece ao redor desde o começo do ano. Mas não tinha percebido o tanto que podia ser prejudicial para a única pessoa que não pode se defender dos ataques. Desde que me tornei amiga de Fernando, me comprometi a estar com ele e impedir que o preconceito e as piadas estúpidas o atingissem – e eu consegui manter essa promessa por dezessete anos. Mas foi só eu me interessar por uma pessoa, que tudo saiu do meu controle.

Eu devo ser uma amiga muito ruim. Do tipo que as outras pessoas fazem postagens de indiretas em grupos específicos de rede social. A que deixa a amizade de lado só para trocar beijos com a nova paixão. Exceto que não estava apaixonada por Emily. É difícil se apaixonar por quem se mantém tão distante e fria o tempo todo. Por uma pessoa que não fica. Por uma pessoa que não se entrega. Mas, com toda a confusão, com a questão sobre o que desejo e como isso pode destruir minha vida, eu tenho agido como os Vale são conhecidos por quem se mantém mais perto do que apenas a adoração das reportagens dos jornais: o egoísmo.

— O que aconteceu antes, Fernando? – pergunto, tentando segurar sua mão.

Ele me afasta e eu me encolho automaticamente. Lavínia cerra os olhos para mim num segundo, mas no outro volta a sua tarefa de limpar o sangue no rosto do meu amigo. Há arranhões no corpo dele, também. Algumas marcas estranhas que vão virar roxos amanhã ou depois. Eu preciso ligar para a mãe dele. Mas ligar para ela é assumir que não estou presente como prometi.

— Fernando estava na sala, fazendo exercício extra de matemática – ele abraça os joelhos, balançando o corpo num movimento rítmico para frente e para trás. – Fernando não viu. Ele estava muito concentrado – pisca os olhos com força, tão rápidos que me deixa zonza. Ele está desconfortável. Ele está a beira de uma crise. Não tem nada que posso fazer para impedir. E dói.

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