Viagens com muitas pessoas são barulhentas. Viagens com um time inteiro de vôlei, empolgados com a visita ao Rio de Janeiro, são insuportáveis. Eu coloco meu headphone na cabeça, no último volume, e afundo meu rosto na janela, fugindo do contato com qualquer pessoa.
Eu deveria estar feliz por ir à cidade carioca – praia, sol, calor. Mas eu não sou tão fã assim do calor. O sol me deixa como um camarão. E a última vez que estive na praia sofri insolação e fiquei um dia inteiro no hospital, tomando soro. Nada legal. Além de tudo, minha cabeça estava uma zona – mais bagunçada que o quarto da minha cunhada. E o meu. Juntos.
Estaria mentindo se eu dissesse que não desconfiava. Sempre soube que era muito diferente da maioria das garotas que convivia. Não porque meus pais disseram tanto isso na minha infância que eu não consegui mais desgrudar dessa ideia. Os motivos pelos quais meus pais falaram isso era muito diferente do que eu pressentia, em algum ponto de mim. Os motivos deles eram errados.
Para meus pais, sou diferente porque sou rica, sou branca, sou alta, sou loira, sou magra, sou linda. Sou diferente do resto da cidade – os pobres mortais – que não conta com mais do que duas dessas características em sua genética ou criação. Meu pai é dono de metade de Ponte Belo, com seus negócios tanto quanto duvidosos, e a cidade inteira se rende ao poder da minha família. Nós nascemos para ser venerados.
É ridículo.
Não era isso que via quando me olhava no espelho. Muito antes de crescer. Muito antes de ser dominada por hormônios que não fazem sentido. Muito antes de tudo. Quando olhava no espelho, nos pequenos segundos que eu me reconhecia, quando percebia que aquela garota bonita do outro lado era eu, eu também via que alguma coisa não se encaixava. Alguma parte de mim não fazia parte do modelo de existência que fui obrigada a engolir desde que nasci.
Eu era padrão, isso é claro.
Eu era a garota que outras garotas tentavam imitar.
A garota que estamparia capas de revistas adolescentes, se quisesse. A sortuda que nunca precisou de nenhuma fórmula maluca de dieta, nenhum remédio para crescimento, nenhum produto para o cabelo, nenhuma lente para os olhos.
Ainda assim, não fazia sentido me olhar por mais tempo do que alguns segundos no espelho. Ainda assim, eu sabia que minha aparência não era tudo. Nunca seria tudo. Dentro de mim, eu não me sentia aquela garota que todos queriam ser, em algum ponto. Eu não me sentia inteira. Eu, sequer, me sentia padrão.
Era alguma coisa – eu sabia.
Eu só não sabia o quê.
E lutei contra isso, lutei contra tomar conhecimento de um fato que não conseguiria reverter. Meu irmão sempre diz que, em algum nível, a ignorância é uma benção. Pedro diz isso brincando, é claro. Não ha nada mais importante no mundo para ele do que o conhecimento. Talvez sua namorada, em algum ponto. Talvez eu, se fosse muito sortuda. Mas, acima de qualquer coisa, Pedro era o cara curioso que sempre, sob qualquer circunstância, queria descobrir mais das coisas, para que elas ficassem mais claras em sua mente, para que ele conseguisse lidar com elas num plano intelectual – ainda que esteja dentro dos seus sentimentos.
Eu não.
Eu preferia não saber.
Eu preferia continuar sendo a garota que não se reconhece no espelho. Que se vê. Mas não se enxerga. Porque se conhecer é perigoso. E se aceitar, como se é, nem sempre é possível para todas as pessoas.
— Posso sentar aqui? – Lavínia me cutuca. Dou de ombros e ela se joga ao meu lado – Eagles, é? There she stood in the doorway – ela cantarola a música que escuto.
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Relicário
Teen FictionVENCEDOR DO THE WATTYS 2017, NA CATEGORIA "ORIGINAIS" Dafne era uma Vale e, como tal, devia se esforçar para perpetuar o modelo perfeito de família tradicional brasileira que tinha. Pelo menos, era isso que seus pais berravam para ela, toda vez que...