Emily tem um humor mais afiado do que qualquer pessoa que eu conheço, o que me causa uma mistura de socos no estômago e falta de fôlego. Não é uma sensação boa. Mas, também, não é uma sensação ruim. Nós nos sentamos no fundo do Mundo da Lua, próximos a prateleira de livros, que ela encara desde que chegamos.
— É incrível – ela franze o cenho.
— O que?
— É exatamente como me falaram que era – ela saca o celular do bolso e tira uma foto, então me encara – Sorry. Acho muito estranho conhecer um lugar que foi descrito milhares de vezes e perceber que a descrição foi tão realista.
Dou de ombros, bebendo meu Frapuccino, porque não há o que dizer quanto a isso. Não passei por muitas experiências dessas e, desconfio, mesmo que tivesse passado, não seria parecido com o que Emily viveu. Quanto mais encaro seus olhos azuis, mais me dou conta de que nada do que se dizia dessa garota era comum.
— Nunca achei que veria esse lugar – ela dá de ombros, bebendo seu café gelado.
— O pedacinho no meio do nada...
Ela arqueia uma sobrancelha para mim e eu desvio o olhar, sentindo minhas bochechas corarem.
— É a letra de uma música brasileira, de uma dupla que foi muito querida. Longa história.
Emily sorri.
É engraçado vê-la sorrir, porque fica claro que não é algo que ela faz com frequência, então parece mais uma careta do que uma expressão de contentamento. Mas ela fica mais jovem também. De repente, me dou conta de que não sei a idade dela.
Na verdade, não sei nada dela.
E isso é estranho.
— Quantos anos você tem?
— Vinte e dois.
— E você foi embora do Brasil quando?
Emily franze o cenho para mim, sem piscar seus olhos. Tento manter o contato visual, embora sinta o azul dela se tornar quase gelado, temperatura que percorre meu corpo e se aloja no meu estômago quase no mesmo instante. Pisco, algumas vezes, mas continuo olhando. Porque sou uma Vale. Porque sou uma Vale e não me intimido com muita coisa. E não quero que ela pense que me intimido com ela.
— Tudo bem aí, meninas? – Lua pergunta, do balcão.
O Mundo da Lua está relativamente vazio nessa tarde, o que é estranho. Ao fundo, toca um folk irlandês que havia feito Emily revirar os olhos e gravar uma nota de voz, para mandar, como mandou a foto, para quem quer que fosse que estivesse do outro lado do oceano.
— Sim – eu respondo, abrindo um sorriso.
Ela pisca para mim e entra na sua cozinha.
— Eu tinha oito – Emily fala, por fim, me fazendo ter um pequeno sobressalto na cadeira – Um ano depois dos meus pais se separarem.
— Sinto muito.
— Não sinta. Se separar foi a melhor coisa que os dois fizeram – ela faz uma careta e se recosta na cadeira – Acho que minha vida teria sido ainda pior, se não tivesse acontecido. Seus pais ainda são casados?
— Anram.
— São felizes?
— Depende – sinto o bolo na minha garganta se formar – O que você está chamando de felicidade?
— Justo – ela arqueia a sobrancelha sorrindo – Você acha que eles são felizes?
— Não – eu encaro a prateleira de livros, para não olhar para ela – Mas eles acham. A felicidade dos meus pais está relacionado a dinheiro. Enquanto eles tiverem, estarão bem.
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Relicário
Teen FictionVENCEDOR DO THE WATTYS 2017, NA CATEGORIA "ORIGINAIS" Dafne era uma Vale e, como tal, devia se esforçar para perpetuar o modelo perfeito de família tradicional brasileira que tinha. Pelo menos, era isso que seus pais berravam para ela, toda vez que...