— É um inferno! – é o que digo assim que meu melhor amigo atende a minha terceira tentativa de ligação do dia – Eu não aguento mais!
Está um calor dos diabos, mas, ironicamente, venta ainda mais do que faz calor nessa cidade, de um jeito tão absurdo e sem sentido que não dava para acreditar. Não dava, também, para acreditar que de todos os lugares que minha irmã se esconderia, seria uma cidade minúscula e perdida no meio do mapa. Minto: nem o mapa tinha essa cidade. O que a gente pode pensar de um lugar que nem o GPS encontrava, pelo amor do céu?
Eu odiava cada ponto do Brasil.
Eu odiava a temperatura alta, o excesso de insetos, as pessoas sorridentes e calorosas demais. Não, cara, eu não quero conversar com você numa droga de parada de ônibus. Se eu tô com fone de ouvido, eu não quero falar com você. Eu não quero nem olhar para sua cara, está entendendo? E também não quero que você fique olhando para a minha. Sim, meu cabelo é azul. Você é idiota e nem por isso eu fico te julgando com o olhar por isso, certo?
Certo.
Eu odeio cidades pequenas. Mentes pequenas. Gente que está mais interessado em fofocas de terceira qualidade a viver sua vida. Gente que andava despreocupadamente pela rua. Sério, gente, oi, tempo é dinheiro, lembra? Por que vocês caminham como uma tartaruga? Não estão vendo que eu preciso passar? Nem todo mundo tem o milênio inteiro perdido numa cidade ridícula no meio do nada, onde o diabo não perdeu as botas porque nem ele deve ter tido a coragem de vir visitar, para perambular pelo caminho.
Puta que me pariu.
Eu odiava minha irmã.
Melhor: eu odiava meus pais. Mas isso nunca foi novidade. Duas criaturas egoístas e mesquinhas, que, durante a vida inteira, só fez um inferno na vida do outro mesmo estando separados por um oceano inteiro. Um oceano inteiro, cara, e eles conseguiram estragar a vida do outro mesmo assim. Como uma merda dessas é possível?
— Calma – diz a voz rouca do meu amigo, do outro lado da linha, do outro lado do oceano, onde eu adoraria estar, por sinal – Vai piorar.
— Babaca.
Ele ri.
Óbvio que ele ri. Eu nem sei porque eu gosto desse idiota de cabelo laranja. Provavelmente porque eu sou uma idiota de cabelo azul.
— Coliiin – eu resmungo, o que o faz rir mais.
— Não pode ser tão ruim assim, Blue. Essa é a cidade da Jess, não é? Ela é ótima, logo a cidade não pode ser o grande inferno que você sempre diz.
— Ah, cala a boca, seu apaixonado idiota! Queria ver você aqui, com sua pele translúcida. Aí você pararia de reclamar.
— Nada da sua irmã?
Eu bufo, sentando-me na calçada e pegando uma pedra com minha mão livre. Lilian não estava facilitando as coisas – e quando é que ela facilitava, afinal? Mas eu não esperava que fosse tão difícil. Puta que pariu, essa cidade é do tamanho de um ovo de codorna. Não era possível que ela conseguisse se esconder tão bem por tanto tempo. E, pior, não era possível que ela conseguisse fugir tão bem de mim num raio de quilômetros tão irrisório.
— Se você considerar que eu vi os cabelos rosas hoje... – resmungo.
— Ora, parece que temos um avanço.
— Você é ridículo – suspiro – Ela correu assim que me viu. Sinceramente, Colin, eu sou tão ruim assim?
Posso ouvir os batuques dele por algum tipo de superfície – madeira, talvez. E consigo imaginar a impaciência encarnada em meu amigo, revirando os olhos, encarando o teto, enquanto batuca uma melodia sem sentido em qualquer lugar que esteja. Ele é incapaz de ficar quieto. Era desnorteador, mesmo ele estando em Dublin e eu estando... bem, nesse fim de mundo chamado Ponte Belo.
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Relicário
Novela JuvenilVENCEDOR DO THE WATTYS 2017, NA CATEGORIA "ORIGINAIS" Dafne era uma Vale e, como tal, devia se esforçar para perpetuar o modelo perfeito de família tradicional brasileira que tinha. Pelo menos, era isso que seus pais berravam para ela, toda vez que...