VINTE E DOIS

1.6K 256 100
                                    


A primeira coisa que percebo, assim que entro em estado de consciência, é a garganta seca. Abro e fecho a boca, para puxar ar, e tudo queima dentro de mim, enquanto, segundo a segundo, a dor de cabeça pede licença para ocupar um grande espaço. Solto um gemido e me encolho na cama, fechando os olhos de novo. Ao fundo, posso ouvir a voz de Vênus. E, mesmo sem me esforçar, também escuto mais do que os resmungos típicos de meu irmão. Eles estão brigando. Eles estão brigando e eu estou com dor.

Viro na cama e encaro o teto, piscando os olhos com força para ver se isso ajuda a cabeça a parar de doer. Piora, é claro. Porque agora, além da dor, também sinto a tontura me alcançar. Meu estômago embrulha e eu quase, quase mesmo, vomito. Mas a bile some com a mesma rapidez que aparece e eu solto um gemido, mais alto do que deveria.

Eu precisava de alguém com experiências de ressaca para me ajudar.

Mas, para isso, eu teria que levantar, sair do meu quarto e olhar para a cara de Vênus. O que não deveria ser tão aversivo, não fosse o fato de que ela parecia estar brigando com meu irmão. E, elementar, eu não tinha dúvida alguma que meu irmão brigaria comigo assim que colocasse os olhos em mim.

Resmungo, me arrastando pela cama, até alcançar meu celular. Não há nada nele, além de uma ligação perdida do meu pai. São dez e quarenta e sete da manhã e meu quarto está quase amarelo, com o sol que penetra as frestas da cortina. Olhar para a luz fazem meus olhos doerem e eu os fecho de novo, os flashs da noite anterior iluminando, de maneira ainda mais colorida, a minha mente.

Merda. As pessoas sempre diziam que uma bebedeira produzia amnésia. Era mentira. Eu lembrava de tudo. Só porque eu queria esquecer.

Me sento, e minha cabeça pesa tanto que eu encolho os ombros e a abaixo, porque não consigo levantar o queixo. O chão do quarto roda por um instante e quando me levanto percebo que eu não estava só de ressaca – eu ainda estava levemente tonta.

E aquilo era tão desesperador quanto ridículo.

— Minha deusa do céu – é o que Vênus está dizendo, com os braços levantados e o cabelo todo bagunçado – tu é chato pra caralho, puta que pariu.

Pedro está com o rosto corado, sinal de que a irritação já se instalou em cada parte de seu sangue. Eu recuo um passo, mas claro que esse detalhe não incomoda nem um pouco sua namorada. Ela continua com o queixo em pé, encarando meu irmão sem nenhum pingo de medo no seu olhar, enquanto ele parece respirar fundo para não perder a paciência.

Vulcano está deitado no meio da sala, sonolento, quase entediado com a briga entre os dois. Ele nem se mexe quando eu entro, embora pisque para mim como se dissesse: aqui estamos nós, outra vez.

— Vênus, você não pode sair por aí pegando as coisas sem pedir permissão – ele diz, num tom que usaria para conversar com nossos primos caçulas, com certeza.

— Bom, eu não teria que fazer isso, se o dono das coisas não me ignorasse como uma criança de seis anos – ela cruza os braços.

— Sim, claro, porque o que você fez é muito maduro, não é?

— Atitudes imaturas precisam de medidas imaturas. A culpa é sua.

— A culpa é sempre minha – ele faz uma careta.

— O que eu posso fazer? Eu sou maravilhosa. E você é um mero mortal.

É quando acontece. O semblante de Pedro muda, e ele quase sorri, embora desista no meio do caminho. Mas seus ombros caem e ele perde a atitude defensiva, e só de ver eu sei que Vênus vai vencer o fim da discussão. Os olhos dele estão quase azuis agora, a essa hora da manhã, a luz batendo diretamente nele. E Vênus dá um sorriso.

RelicárioOnde histórias criam vida. Descubra agora