QUARENTA

1.2K 216 86
                                    

Pedro não me deixa ver a notícia que causou a ira de meu pai, por mais que implore. Ao invés disso, me leva para Belo Horizonte, depois de tratar meus ferimentos no hospital. Espero vinte mil perguntas, mas o lugar é da minha família, então ninguém se pronuncia. Tenho um braço quebrado, como soube assim que caí. Levo doze pontos nas costas, um corte de vidro que corta metade dela, na horizontal, e leva quase uma hora para ser limpo por causa de todos os cacos que entraram no meu corpo na queda. E duas costelas quebradas.

A médica não sabe quando vou poder voltar a jogar, diz que não é especialidade dela, mas Daniel está, assim que acordo na beira da cama, pronto para me avaliar. Ele diz que preciso fazer alguns exames específicos e que vai ser bom estar em BH, porque Rafael pode providenciar – estamos todos precisando de boas distrações, segundo Daniel. Mas vai demorar pelo menos um mês para tirar o gesso. E algumas sessões de fisioterapia para cumprir, antes de poder voltar a treinar.

Sou sufocada pela culpa quando escuto isso, mas não digo em voz alta. Nenhum deles querem ouvir. Quando pergunto a Daniel o que tem na matéria que meu irmão não me deixou ler, ele apenas dá de ombros e diz:

— Que você beija meninas. Quem se importa? Se quer saber, já beijei garotos também.

— O quê? – quase pulo, mas a dor se alastra rápido e Daniel me segura. – Como assim?

— Depois do fim do noivado e tudo o mais – mexe a cabeça, com descaso. – Nada muito grandioso. A gente precisa experimentar as coisas antes de decidir se gosta.

— E você gosta?

— Não. Eu gosto de seios. E você?

— Acho que eu também.

Ele ri, porque é bem típico de Daniel. Mas eu não consigo ter emoção alguma.

A viagem para Belo Horizonte é feita no mesmo dia e estou exausta e um pouco baqueada com o tanto de analgésico que tem no meu corpo. Pedro até coloca uma música por um tempo, mas desiste antes que chegamos na metade do caminho. Olho para ele, observando o curativo sobre a sobrancelha e sinto meu coração se apertar.

— Tudo bem? – ele pergunta, percebendo meu olhar.

— Está doendo.

Ele suspira e apoia o cotovelo na janela, antes de apoiar sua cabeça na sua mão. Nesse ângulo, dá para perceber o arroxeado em seu olho, começando a se formar e ficar intenso.

— Eu sei.

— Não estou falando do braço e das costelas.

— Eu sei.

— Vai passar?

— Não agora.

— Algum dia?

Ele dá de ombros e segura o volante com as duas mãos, que também estão machucadas. Estamos quase na casa de Rafael agora. Desvio o olhar para a movimentação de trânsito da capital, que tanto assusta quem vem do interior. O barulho cacofônico me deixa zonza por alguns segundos. É bom estar confusa com outra coisa que não a dor.

— Desculpe – sussurro.

— A culpa não é sua.

— É sim. Seu machucado. A briga. Tudo.

— Dafne... fomos criados para nos sentirmos culpados por todos os abusos e excessos que nossa família nos causou. E é mais difícil romper com isso do que romper com o sobrenome que carregamos. Mas acredite em mim: isso tudo que aconteceu hoje não é sua culpa – ele franze o cenho. – Bem, talvez o garoto no hospital seja.

RelicárioOnde histórias criam vida. Descubra agora