Pedro não me deixa ver a notícia que causou a ira de meu pai, por mais que implore. Ao invés disso, me leva para Belo Horizonte, depois de tratar meus ferimentos no hospital. Espero vinte mil perguntas, mas o lugar é da minha família, então ninguém se pronuncia. Tenho um braço quebrado, como soube assim que caí. Levo doze pontos nas costas, um corte de vidro que corta metade dela, na horizontal, e leva quase uma hora para ser limpo por causa de todos os cacos que entraram no meu corpo na queda. E duas costelas quebradas.
A médica não sabe quando vou poder voltar a jogar, diz que não é especialidade dela, mas Daniel está, assim que acordo na beira da cama, pronto para me avaliar. Ele diz que preciso fazer alguns exames específicos e que vai ser bom estar em BH, porque Rafael pode providenciar – estamos todos precisando de boas distrações, segundo Daniel. Mas vai demorar pelo menos um mês para tirar o gesso. E algumas sessões de fisioterapia para cumprir, antes de poder voltar a treinar.
Sou sufocada pela culpa quando escuto isso, mas não digo em voz alta. Nenhum deles querem ouvir. Quando pergunto a Daniel o que tem na matéria que meu irmão não me deixou ler, ele apenas dá de ombros e diz:
— Que você beija meninas. Quem se importa? Se quer saber, já beijei garotos também.
— O quê? – quase pulo, mas a dor se alastra rápido e Daniel me segura. – Como assim?
— Depois do fim do noivado e tudo o mais – mexe a cabeça, com descaso. – Nada muito grandioso. A gente precisa experimentar as coisas antes de decidir se gosta.
— E você gosta?
— Não. Eu gosto de seios. E você?
— Acho que eu também.
Ele ri, porque é bem típico de Daniel. Mas eu não consigo ter emoção alguma.
A viagem para Belo Horizonte é feita no mesmo dia e estou exausta e um pouco baqueada com o tanto de analgésico que tem no meu corpo. Pedro até coloca uma música por um tempo, mas desiste antes que chegamos na metade do caminho. Olho para ele, observando o curativo sobre a sobrancelha e sinto meu coração se apertar.
— Tudo bem? – ele pergunta, percebendo meu olhar.
— Está doendo.
Ele suspira e apoia o cotovelo na janela, antes de apoiar sua cabeça na sua mão. Nesse ângulo, dá para perceber o arroxeado em seu olho, começando a se formar e ficar intenso.
— Eu sei.
— Não estou falando do braço e das costelas.
— Eu sei.
— Vai passar?
— Não agora.
— Algum dia?
Ele dá de ombros e segura o volante com as duas mãos, que também estão machucadas. Estamos quase na casa de Rafael agora. Desvio o olhar para a movimentação de trânsito da capital, que tanto assusta quem vem do interior. O barulho cacofônico me deixa zonza por alguns segundos. É bom estar confusa com outra coisa que não a dor.
— Desculpe – sussurro.
— A culpa não é sua.
— É sim. Seu machucado. A briga. Tudo.
— Dafne... fomos criados para nos sentirmos culpados por todos os abusos e excessos que nossa família nos causou. E é mais difícil romper com isso do que romper com o sobrenome que carregamos. Mas acredite em mim: isso tudo que aconteceu hoje não é sua culpa – ele franze o cenho. – Bem, talvez o garoto no hospital seja.
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Relicário
Teen FictionVENCEDOR DO THE WATTYS 2017, NA CATEGORIA "ORIGINAIS" Dafne era uma Vale e, como tal, devia se esforçar para perpetuar o modelo perfeito de família tradicional brasileira que tinha. Pelo menos, era isso que seus pais berravam para ela, toda vez que...